Capítulo 5

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Você acorda, suado e ofegante, de um pesadelo do qual não consegue lembrar.

Você se levanta da cama, corre até o interruptor, acende a lâmpada e passa o quarto em revista.

Ninguém.

Você expira. Uma, duas, três vezes. A tensão em sua musculatura diminui.

Você sai do quarto, dobra à esquerda no corredor e atravessa a sala até o jardim frontal.

Lá fora, o lusco-fusco anuncia para alguns minutos os primeiros raios do sol. Uma névoa vinda do mar começa a entrar pelas grades do portão.

Você sobreviveu a essa estranha noite. Sem mais fantasmas, você pensa. Sem mais surpresas. Apenas esperar pela hora final.

Você se recosta na parede. Fecha os olhos.

Você se sente bem. Os pulmões, o estômago, as pernas — tudo parece funcionar a contento. Será que de algum modo o câncer retrocedeu? Numa noite tão estranha, será que algo em que você não acredita — um milagre — aconteceu?

À sua esquerda, uma voz:

— Sabes do que eu mais sinto falta?

Em um pulo, você abandona a parede.

À sua frente, o fantasma de D. Pedro II.

Ele tem cabelos grisalhos penteados para um dos lados, o que lhe realça a testa, talhada em quadrado. Os olhos escondem-se sob os cenhos. O rosto termina em um bigode e uma barba grisalhos.

Veste-se com uma camisa branca, sobreposta por um colete da mesma cor. Cobrindo o conjunto, um terno preto, em cujo paletó há duas insígnias afixadas à altura do peito, à esquerda. Ao redor do colarinho, que lhe cobre todo o pescoço, uma gravata borboleta preta. Presa ao colete, oculta em parte atrás do paletó, uma corrente de relógio, em ouro.

— Cavalariças Imperiais — continuou o fantasma. - É do que sinto mais falta. Eu as adorava.

— Vossa Excelência...

— Você as demoliu.

— O governador precisava de um estacionamento pra Copa do Mundo.

— Você desconsiderou o projeto de transformar a área em parque. Optou por disponibilizar o terreno a um empreendimento imobiliário.

— Não falta parque na cidade — você diz.

— O parque fazia parte de algo de maior envergadura: o renascimento do Bairro Imperial.

— O projeto não me pareceu bom.

— O planeta inteiro compreende os benefícios de que se explorrem os legados históricos.

Você aponta o indicador em riste para o fantasma:

— Chega! Se vocês pudessem me fazer mal, já teriam feito. Vocês só podem falar. Como 99% dos brasileiros. Eu sou dos 1% que tem o poder.

— Você tem o poder de executar, e o usa para o mal.

Você recolhe o dedo, mas continua:

— E daí? Vou morrer a qualquer momento. Ninguém pode me punir.

— Você pensa então que tudo se encerra com a morte?

— Depois daqui só tem a escuridão.

— Fosse assim, seu tolo, eu estaria aqui?

Você recua um passo, perante a lógica da afirmação.

— Há algo além — o fantasma diz. — Há inclusive um julgamento.

— Eu... vou ser julgado?

— Por ter menosprezado suas funções.

— Vão me julgar por algumas propinas que recebi? Por uma ou outra empresa laranja ou licitação fraudada? Pensei que o plano celestial fosse menos mesquinho.

— A corrupção não foi seu maior crime — diz o fantasma. — O desleixo com suas funções, sim.

— Eu --

— Não há país de futuro sem respeito ao passado. Você tirou o futuro de nosso país.

Um calafrio percorre seu corpo. Um frio invade sua barriga. Os músculos de seu dorso se enrijecem. Você percebe que as assombrações foram só a preparação para algo que virá agora. Algo que o aterroriza, embora você nem saiba o que é.

À sua frente, o fantasma evapora-se. Seus vestígios devanescem-se em meio às primeiras irradiações do sol, mesclando-se à névoa que começa a penetrar pelas janelas.

Você sente dor. Primeiro, nos pulmões. Depois, nas costas. Finalmente, nas pernas, que, sem forças, precipitam-no de cócoras no granito.

Olhos cravados no chão, você se arrepende. Tenta dizer isso. As palavras não saem.

Será que só o pensamento basta? para que eu obtenha o perdão divino?

Você olha ao redor, em busca de ajuda. A cor azul-arroseada do crepúsculo cede lugar, em segundos, a um vermelho de sangue. Uma lufada começa a soprar, vergando a copa das árvores. Um fedor de enxofre parece vir junto com ele. Sob a ação do vento, a névoa se espraia e logo envolve toda a casa, e você. Agora você mal vê as próprias mãos.

De repente, som de cascos. Algo se aproxima, à sua frente. Você divisa o vulto de um cavalo.

Você dá um meio-sorriso. Será que o perdão silencioso funcionou? Será que D. Pedro I vem salvá-lo?

O meio-sorriso desaparece. Não, não é D. Pedro I. O cavalo dele é negro. Entre as brechas de névoa que o vento cria, você vê que o cavalo à frente é branco. Há alguém montado nele, mas é difícil enxergar...

Você força a vista.

Uma lufada repentina abre uma brecha maior na névoa. Então, você vê o cavaleiro...

Seu coração bate, a ponto de um enfarto.

Você não tem tempo de processar a visão à frente.

Seus olhos começam a sangrar.

Em segundos, você está cego.

Você também sente o fim da audição.

O ar se esvai em uma longa respiração e não parece mais voltar.

Com o que lhe resta de sentidos, você sente o corpo cair de lado, mas não sente o impacto, nem a dor, nem mais nada.

FIM

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⏰ Last updated: Jan 21, 2019 ⏰

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