Você acorda, suado e ofegante, de um pesadelo do qual não consegue lembrar.
Você se levanta da cama, corre até o interruptor, acende a lâmpada e passa o quarto em revista.
Ninguém.
Você expira. Uma, duas, três vezes. A tensão em sua musculatura diminui.
Você sai do quarto, dobra à esquerda no corredor e atravessa a sala até o jardim frontal.
Lá fora, o lusco-fusco anuncia para alguns minutos os primeiros raios do sol. Uma névoa vinda do mar começa a entrar pelas grades do portão.
Você sobreviveu a essa estranha noite. Sem mais fantasmas, você pensa. Sem mais surpresas. Apenas esperar pela hora final.
Você se recosta na parede. Fecha os olhos.
Você se sente bem. Os pulmões, o estômago, as pernas — tudo parece funcionar a contento. Será que de algum modo o câncer retrocedeu? Numa noite tão estranha, será que algo em que você não acredita — um milagre — aconteceu?
À sua esquerda, uma voz:
— Sabes do que eu mais sinto falta?
Em um pulo, você abandona a parede.
À sua frente, o fantasma de D. Pedro II.
Ele tem cabelos grisalhos penteados para um dos lados, o que lhe realça a testa, talhada em quadrado. Os olhos escondem-se sob os cenhos. O rosto termina em um bigode e uma barba grisalhos.
Veste-se com uma camisa branca, sobreposta por um colete da mesma cor. Cobrindo o conjunto, um terno preto, em cujo paletó há duas insígnias afixadas à altura do peito, à esquerda. Ao redor do colarinho, que lhe cobre todo o pescoço, uma gravata borboleta preta. Presa ao colete, oculta em parte atrás do paletó, uma corrente de relógio, em ouro.
— Cavalariças Imperiais — continuou o fantasma. - É do que sinto mais falta. Eu as adorava.
— Vossa Excelência...
— Você as demoliu.
— O governador precisava de um estacionamento pra Copa do Mundo.
— Você desconsiderou o projeto de transformar a área em parque. Optou por disponibilizar o terreno a um empreendimento imobiliário.
— Não falta parque na cidade — você diz.
— O parque fazia parte de algo de maior envergadura: o renascimento do Bairro Imperial.
— O projeto não me pareceu bom.
— O planeta inteiro compreende os benefícios de que se explorrem os legados históricos.
Você aponta o indicador em riste para o fantasma:
— Chega! Se vocês pudessem me fazer mal, já teriam feito. Vocês só podem falar. Como 99% dos brasileiros. Eu sou dos 1% que tem o poder.
— Você tem o poder de executar, e o usa para o mal.
Você recolhe o dedo, mas continua:
— E daí? Vou morrer a qualquer momento. Ninguém pode me punir.
— Você pensa então que tudo se encerra com a morte?
— Depois daqui só tem a escuridão.
— Fosse assim, seu tolo, eu estaria aqui?
Você recua um passo, perante a lógica da afirmação.
— Há algo além — o fantasma diz. — Há inclusive um julgamento.
— Eu... vou ser julgado?
— Por ter menosprezado suas funções.
— Vão me julgar por algumas propinas que recebi? Por uma ou outra empresa laranja ou licitação fraudada? Pensei que o plano celestial fosse menos mesquinho.
— A corrupção não foi seu maior crime — diz o fantasma. — O desleixo com suas funções, sim.
— Eu --
— Não há país de futuro sem respeito ao passado. Você tirou o futuro de nosso país.
Um calafrio percorre seu corpo. Um frio invade sua barriga. Os músculos de seu dorso se enrijecem. Você percebe que as assombrações foram só a preparação para algo que virá agora. Algo que o aterroriza, embora você nem saiba o que é.
À sua frente, o fantasma evapora-se. Seus vestígios devanescem-se em meio às primeiras irradiações do sol, mesclando-se à névoa que começa a penetrar pelas janelas.
Você sente dor. Primeiro, nos pulmões. Depois, nas costas. Finalmente, nas pernas, que, sem forças, precipitam-no de cócoras no granito.
Olhos cravados no chão, você se arrepende. Tenta dizer isso. As palavras não saem.
Será que só o pensamento basta? para que eu obtenha o perdão divino?
Você olha ao redor, em busca de ajuda. A cor azul-arroseada do crepúsculo cede lugar, em segundos, a um vermelho de sangue. Uma lufada começa a soprar, vergando a copa das árvores. Um fedor de enxofre parece vir junto com ele. Sob a ação do vento, a névoa se espraia e logo envolve toda a casa, e você. Agora você mal vê as próprias mãos.
De repente, som de cascos. Algo se aproxima, à sua frente. Você divisa o vulto de um cavalo.
Você dá um meio-sorriso. Será que o perdão silencioso funcionou? Será que D. Pedro I vem salvá-lo?
O meio-sorriso desaparece. Não, não é D. Pedro I. O cavalo dele é negro. Entre as brechas de névoa que o vento cria, você vê que o cavalo à frente é branco. Há alguém montado nele, mas é difícil enxergar...
Você força a vista.
Uma lufada repentina abre uma brecha maior na névoa. Então, você vê o cavaleiro...
Seu coração bate, a ponto de um enfarto.
Você não tem tempo de processar a visão à frente.
Seus olhos começam a sangrar.
Em segundos, você está cego.
Você também sente o fim da audição.
O ar se esvai em uma longa respiração e não parece mais voltar.
Com o que lhe resta de sentidos, você sente o corpo cair de lado, mas não sente o impacto, nem a dor, nem mais nada.
FIM
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A Última Noite
FantasyAcometido por uma doença terminal, um político corrupto é assombrado por fantasmas que lhe relembram os atos condenáveis da vida dele.