Capítulo 3

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Você acorda de sopetão.

Alguém pronuncia seu nome.

Você soergue-se na cama.

O quarto às escuras.

Você esfrega os olhos, em uma tentativa de enxergar melhor.

Após alguns segundos você começa a divisar os contornos e objetos do cômodo.

Você passa uma vista d'olhos pelo aposento.

Não parece haver ninguém ali.

Então, por que eu sinto uma... presença?

No teto de telhas, catitas guincham enquanto correm sobre as ripas. Lá fora, sapos coacham e alguma rês desgarrada muge.

À sua direita, algo se move, mesclado às sombras.

Suas mãos suam. Seus joelhos espasmam. Sua respiração fica em suspenso por alguns segundos.

De sopetão, você se levanta da cama pelo lado oposto ao da presença. Corre até a porta e, no interruptor na parede, acende a lâmpada no centro do quarto.

Ao lado da cama, um homem.

Não é mais José Bonifácio.

Você não tem dificuldade de reconhecê-lo. O rosto, talhado em triângulo, de cabelos escuros crespos e de suíças ligadas a um bigode, é conhecido de todos os brasileiros desde a idade escolar.

D. Pedro I veste casacão marrom de quatro botões e golas pretas, sobre uma camisa branca. Calça botas de cavalaria. Segura à mão direita um chicote de couro, preso ao punho por uma correia.

— Estou louco — diz você, braços abertos.

— Estivesse, seria menos grave. Haveria um motivo razoável para que o país esteja sem memória histórica, em pleno Bicentenário da Independência.

Você meneia com a cabeça:

— Você não... — O fantasma ergue o queixo e crava os olhos nos seus. — Vossa Majestade, com todo o respeito, não lê os jornais? O Bicentenário foi um sucesso.

— "Sucesso"?

— Os eventos tiveram lotação máxima.

— "Eventos"?

Shows — você diz.

— Você é um historiador, com toda a vida dedicada a isso, e confunde espetáculo com ação efetiva de preservação histórica?

— Espetáculos engajam as pessoas, imperador.

— Tal... "engajamento"... não impediu o roubo de meus escritos do Instituto Histórico e Geográfico. Junto com a Constituição original de 1824.

— O instituto sobrevive das contribuições dos sócios — você diz. — Não recebe recursos do ministério.

— Antes do roubo, o Instituto tinha aprovado projeto junto ao ministério, para uma exposição especial do Bicentenário. O órgão nunca liberou o dinheiro.

— É a burocracia.

— Burocracia, a desculpa para o mau funcionário.

— Foi o pai de Vossa Majestade que trouxe ela pra cá, quando fugiu de Napoleão. Reclame com ele.

Antes que você pisque o olho, o fantasma está à sua frente. Ele o fita. Em seus olhos, um fulgor vermelho. Um vento começa a soprar, com assovio contínuo. As janelas do quarto abrem e fecham, abrem e fecham, sem parar, com um barulho — BANG!, BANG!, BANG! — que parece prestes a lhe estourar os tímpanos. Um copo vazio cai do criado mudo e se estilhaça no chão, com um som que parece cortar sua alma. Morcegos começam a revoar pelo quarto, o ruído das asas em agitação a preencher todo o cômodo. Um fedor de carne putrefada se espraia.

Nas sombras atrás do fantasma, algo começa a se mover, a se aproximar. De repente um som, mais e mais alto...

...plac, plac, plac...

Você tenta divisar o que é, mas está escuro.

(cascos?)

Você quer correr, mas suas pernas parecem fincadas no chão.

...plac, plac, plac...

A sombra adquire contornos, à medida em que se aproxima.

plac, plac, PLAC...

De repente, sai do breu um cavalo corcel de pelagem negra. O animal para ao lado do fantasma. Bufa pelas narinas, que exalam um vapor. O cheiro do equino se mescla ao de carne putrefata. Você fica tonto.

Pondo o pé esquerdo sobre o estribo, o fantasma monta sobre o cavalo. Ele puxa as rédeas do animal, que recua até a parede oposta à que você está. O cavaleiro bate com os calcanhares na barriga da montaria, que dispara.

Rumo a você.

Você fecha os olhos e grita.

Tudo fica em silêncio.

Você não sente nenhum impacto.

Após alguns segundos, você abre um dos olhos.

Depois o outro.

No quarto, só há você.

A Última NoiteWhere stories live. Discover now