Área Segura

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— Tem alguma ideia do que devemos fazer agora? — Ela me perguntou, com os olhos, cor de mel esverdeados, brilhando com o reflexo da lua cheia. Meu coração ainda estava disparado.

— Nenhuma. — Respondi, ofegante.

— Nós conseguimos, Black. — Ela segurou meu rosto com as duas mãos, encostando a testa na minha. — Conseguimos, conseguimos, conseguimos... — Seu polegar acariciou de leve minha bochecha. — Vamos mudar essa cidade, Dê.

— Você é muito otimista, às vezes. — Ri, me permitindo escorar numa árvore e colocar minhas mãos na cintura dela para abraçá-la. A noite estava tão quieta que eu conseguia ouvir nossos corações batendo forte no peito. — Só conseguimos a permissão para produzir o evento. Não sabemos se vai dar certo.

— E quem não apoiaria um grupo de estudantes que quer desenvolver suas habilidades artísticas? — Ana me olhava com um sorriso de quem sabia exatamente qualquer coisa que eu fosse dizer. Me permiti revirar os olhos, soltando a cintura dela. Meu rosto esquentou, ela estava próxima de mim. — Ei, Dê... — Chamou, me fazendo encarar os olhos grandes que ela tinha. — Obrigada. — Ela passou o nariz de leve no meu.

— Pelo que? — Dei uma risada anasalada, tentando ignorar o nervosismo crescente no meu peito por querer quebrar aquela distância entre nós e não poder.

— Por lutar do meu lado. — As mãos desceram para meu pescoço, seu tom era baixo. Seus olhos focados aos meus pareciam compartilhar um segredo antigo. Eu sabia, ela sabia. Ousei tentar desviar os olhos dos dela, mas ela ergueu o polegar para impedir. — É quase meia noite, Dê... Só existe nós dois no mundo. Sem grupo para liderarmos, sem Coronel para nos impedir, sem o Eduardo... Tem... Tem só nós agora. — Molhou os lábios. Engoli em seco.

— Não faça nada que se arrependa, por favor. — Pedi, fechando os olhos por uma fração de segundos.

— Farei algo que se eu não fizer agora, talvez me arrependa de nunca ter feito. — Colou os lábios nos meus, suavemente, como se tivesse medo da cena virar fumaça. Bom, eu tinha medo de tudo evaporar pelos meus dedos.

Então, um som agudo surgiu e abri os olhos, ela não estava mais ali. Não tinha ninguém ali. Olhei ao redor, minhas mãos estavam sujas de sangue, meus pés afundando no solo de terra e grama. A copa das árvores parecia mais densas agora. Cai, com as costas no solo, a terra me puxando cada vez mais para baixo. Estava afundando como se estivesse em água, gosto de sangue na minha boca, cheiro do perfume dela. A última visão que tive foi uma raposa vermelha, sentada aos meus pés, me vendo sumir no chão.

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Para alguém que tem pesadelos frequentes, eu estava acostumado com a sensação. Estava acostumado com lembranças manipuladas de fatos semi-reais. Ainda no breu da madrugada, me vi sentado na cama anotando o sonho no meu caderno, uma recomendação de doutora Daniela para me ajudar a lidar isso. Os sonhos, como ela mesma disse, nada mais são do que sua mente organizando fatos e os armazenando da melhor forma. Ao entender que nada mais é do que um reflexo do seu dia, interpretá-los passa a ser mais fácil. Ela também havia dito que como paciente de TEPT (Transtorno de Estresse Pós Traumático) meus sonhos dizem muito do meu quadro. Estava sem cabeça para produzir uma interpretação do pesadelo, um gosto metálico ainda invadia minha boca, o que só piorou minha tentativa de dormir novamente. Me levantei, descalço, sentindo o chão frio - e sólido - numa tentativa de me prender a realidade. Quando se tem pesadelos com o mundo real, é difícil dizer quando se está sonhando ou não.

Desci as escadas, com a ponta dos pés, sem produzir sons. Estranhei ao chegar na metade da escada e ver luzes vindo da sala com um volume baixo. Caminhei mais devagar, não querendo chamar atenção. Ao chegar no pé da escada, espiei a sala. No sofá, sentado de qualquer jeito, estava meu pai, dormindo. A TV passava a programação corujão, com seriados antigos que muito provavelmente meu pai gostava. Ele era um senhor não tão velho, com leves cabelos grisalhos, corpo marcado pelo sol. Ele era pescador, tinha um sono muito pesado - menos quando se tratava de um leve toque de peixe na sua isca. Me aproximei o deitando e colocando os seus pés no sofá, numa tentativa de deixá-lo mais confortável. Tirei seus sapatos e sua meia, peguei o cobertor que estava na poltrona e cobri seu corpo. Cacei em algum lugar da mesa de centro o controle remoto, desligando a tv e pegando o pacote de salgadinhos para guardar na cozinha. Sabendo que meu pai detesta escuro, acendi a luminária de leitura da poltrona para não deixar a sala perdida nas sombras. Meu pai uma vez, antes de eu nascer, se perdeu no mar e ficou 3 dias desaparecido. Às vezes ainda tem pesadelos com a caverna, e como alguém que está cansado de sonhos ruins, faço minha parte em ajudá-lo nisso. Não consigo me lembrar de quantas vezes ele passou a noite em claro porque eu acordava em pânico pelo menos três vezes por noite, chorando, gritando, completamente perdido.

ORENDATempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang