Dessintonizado

60 7 21
                                    

 ×

Era segunda. E ao contrário do dia extremamente quente que eu tinha enfrentado ontem, hoje chovia. Chovia uma garoa fina, deixando o dia com uma brisa fresca. Era como se o universo estivesse me pedindo uma trégua. Como todo adolescente eu estava com mau humor matinal. As pessoas deveriam desconfiar de quem têm entre 12 e 40 anos e gosta de acordar cedo, porque isso é totalmente fora do fluxo normal da vida. Se adolescentes fossem tranquilos de manhã, eles seriam mais fáceis de lidar e isso faria com que as outras pessoas não odiassem adolescentes, o que vai contra a definição de ser um adolescente.

De acordo com o dicionário Rosa Kashif, adolescente é um adjetivo que significa "aquele que é temido por crianças, ignorado por adultos e odiado por idosos". Se, esse grupo de pessoas que têm entre 13 e 21 anos, não tivesse mau humor matinal quebraria grande parte da ideia do que era ser adolescente na sociedade. Começaria tirando o mau humor pela manhã, o que faria com que não acumulasse tanto estresse durante as aulas, fosse mais eficiente nos estudos e não se estressando não teria motivos para preferir um papo com o colega do que ouvir e anotar a matéria de história. A sociedade não está pronta para adolescentes sendo produtivos. Então eu me permiti estar de mau humor, porque eu estava cumprindo meu dever. Cumprindo muito bem, se me permite dizer.

Respirei fundo, vestindo o meu uniforme cinza do colégio. Fazia tanto tempo que eu não usava que me sentia levemente estranho em vesti-lo. Usar aquela camisa cinza raglan com mangas pretas me causava um leve enjôo. Lembrei do meu primeiro dia no ensino médio, quando mudei para aquele colégio, já que era uma aposta melhor do que me manter no Colégio Municipal de Santa Cecília. Lembrei do medo que senti. Locais novos normalmente me causam certo desconforto porque sinto que pareço um dálmata tentando me enturmar no meio de vacas malhadas. Parecia que era a primeira vez que iria lá: não sabia o que as pessoas iriam pensar ao me ver, nem o que falariam, nem o que fariam. A escola se tornou um local desconhecido para mim e isso me causava uma ansiedade enorme. Queria que Ana estivesse lá para me dizer o quanto odeia segundas feiras ou o quanto matemática pode ser insuportável. Mas ela não estaria.

Eu acredito que tudo acontece por um motivo e que as coisas fluem da maneira que devem ser. Eu me pergunto o motivo de Ana ter morrido desde quando peguei o corpo dela e corri para a estrada em busca de ajuda, porque a bala havia se alojado e ela ainda teve alguns minutos de vida após isso. Porém, morreu na ambulância, a caminho do hospital. E eu não conseguia entender o porquê. Lembro dos bombeiros me perguntando o que tinha acontecido enquanto eu tinha um cobertor nos ombros e um deles apontava uma lanterna para meu olho, tentando checar se estava tudo bem comigo, mas eu simplesmente não conseguia desviar o olhar da manga da minha camiseta suja de sangue. Sangue dela. Lembro dos bombeiros conversando entre si dizendo que eu talvez tenha entrado em choque e estava num estado de paralisia até a situação passar. Lembro de ter passado longos minutos desse jeito, demorei para voltar a falar. A cena do tiro e dela perdendo a vida nos meus braços ficaram num loop diante dos meus olhos.

Por mais que eu tenha analisado todo o antes e depois, eu ainda não tinha visto uma razão plausível para o mundo ter que seguir esse caminho. Mas, como um mero humano, não cabia a mim ver essa razão. Uma força maior controlava os mundos, os mares e os céus, e essa força havia decidido que o tempo de Ana havia acabado. A missão havia sido cumprida. Mas, como qualquer adolescente da minha idade, me permiti ser revoltado por um momento e xinguei essa força dona de toda a verdade existente, com toda minha ignorância humana - e juvenil.

Vesti uma calça jeans e resolvi usar outro dos pares de meias que Ana havia me presenteado durante os anos que tivemos de amizade. Como sempre, os vans vermelhos nos meus pés, hoje usando o de cano médio e deixando os cadarços frouxos, escondendo dentro do tênis. Um leve frio na barriga estremeceu meu estômago e eu resolvi tomar café da manhã, sair um pouco da rotina de comer durante a aula. Desci as escadas, vendo meu pai checar sua maleta de anzóis e linhas. Ele voltaria para a rotina normal no trabalho. No primeiro mês pediu férias, no segundo mudou para o turno da noite. Hoje, retornava ao trabalho diurno. Pensar que ele havia se adaptado ao máximo para poder cuidar de mim... Espero que um dia consiga agradecê-lo por isso. Fui a cozinha, preparar algo para comer e notei o meu lanche da escola embalado com papel filme. Meu pai havia feito dois sanduíches de patê de frango para mim, peguei e coloquei na mochila enquanto abria a geladeira e pegava um dos achocolatado em caixinha, "prontinho" como dizia a embalagem. Depois disso, voltei para a sala agitando para poder abrir.

ORENDAWhere stories live. Discover now