Polos Opostos

31 5 22
                                    

 ×

Mantive os olhos fixos no quadro, observando atentamente a aula de história sobre um conteúdo que eu com certeza já havia visto um milhão de vezes e ainda não havia conseguido decorar. O problema de aulas de história é que nos primeiros dez minutos minha atenção é total da aula e de repente, eu me pego imaginando o grande barco do qual ela falava que os imigrantes vieram... pensava nas noites no mar, nas chuvas... Enquanto Sarah continuava a narrar sobre as grandes navegações e a descoberta da América, eu me imaginava correndo por um longo convés, segurando as cordas das velas porque o vento e o mar pareciam terem se aliado para nos derrubar. Peguei o lápis, começando a esboçar um mar agitado... Essa seria uma das ideias que eu contaria para Ana, os olhos dela brilhariam como sempre acontecia quando eu contava um desses devaneios sem sentido e então ela faria um lindo esboço que ganharia um espaço novo na minha parede.

Continuei rabiscando as ondas, a janela ao meu lado me ajudava já que eu sentia o cheiro do mar. Talvez agora realmente fosse bem mais divertido estar salvando um barco de se afundar em águas violentas do que ficar preso ali. Me permiti sonhar mais um pouco, vendo até onde aquilo tomaria forma. A história se formava como um filme na minha cabeça, eu parecia tão distante daquela sala de aula que não ouvia nada. Não existia um mundo onde uma capitã não corresse pelo convés gritando para nós segurarmos enquanto o navio ameaçava virar...

— Davi? — Chamou a professora, fazendo eu acordar. Algo me dizia que ela não chamava pela primeira vez. Ergui meus olhos, vendo Sarah com as mãos na cintura, me encarando com uma expressão decepcionada. Ela sabia que eu estava em um daqueles meus momentos de universo particular, mas jamais aliviaria para mim porque eu era o "garoto da amiga morta". Molhei os lábios, dois meses atrás, Ana e eu inventariamos um jeito mais divertido de contar a matéria, com uma dose ou outra de fantasia. Nesse instante, eu não sabia nem onde da história ela estava. — Pode me resumir o assunto, já que parece dominá-lo tão bem?

Meus olhos foram para o quadro, numa tentativa de me achar uma pista. Renata esvaziava o apontador e analisava a cena. Meu olhar encontrar o dela e ela, de maneira nada sutil, esticou o braço e apontou para um dos tópicos: A expedição de Cabral. Molhei os lábios, sentindo uma estranha criatividade fluir nas minhas veias. Um leve sorriso surgiu nos meus lábios, por meio segundo as coisas pareciam se encaixar e agora eu me levantaria, com passos exagerados e minha fiel companheira ruiva logo atrás. Sem a permissão da professora, eu e ela contaríamos uma aula onde mudariamos o nome para "Brasil: O país que nasceu do roubo", já que Cabral foi um perfeito pilantra em dizer que acabou aqui por acidente. Mas eu não podia. Ana não estaria lá com sua língua solta para falar com todas as letras o quão cara de pau Pedro tinha sido... Me pareceu tão difícil fazer a cena sozinho. Me faltou confiança, faltou coragem, faltou vontade.

— Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil com a desculpa que refazia o trajeto de Vasco da Gama, mas claramente veio aqui tomar as terras descobertas por Cristóvão Colombo. — Resumi, cruzando os braços e apoiando a cabeça na parede.

— Acho que podia ter tirado uma foto do Pedro chegando no Brasil e postar naquele twitter lá, o "momentos antes da merda acontecer" — Falou Italo, arrancando risadas da turma e me livrando do momento tenso.

Italo era legal. Nós não tínhamos exatamente um contato próximo, mas ele era divertido e jamais eu tinha visto ele triste. Ele tinha um irmão gêmeo na outra turma, o Ivan, melhor amigo do Minibyte. Os gêmeos Filho, como a gente chamava já que os dois tinham "Filho" no nome, eram os mais conhecidas do colégio. Rolava boatos que Italo gostava de Renata, mas nada disso foi confirmado, os dois se falavam tão pouco apesar de trabalharem juntos na Pauta. Ele era responsável pelas crônicas e tirinhas, histórias exageradas com os alunos, mas nada ofensivo. Longe de ser ofensivo. Entre minhas favoritas, estava a tirinha do Minibyte descobrindo um bug no computador e na real realmente ser um inseto, e então ele precisa chamar alguém para ajudá-lo, já que ele tem medo de insetos. Ri, lembrando de todas as edições do jornal que já havia feito o dia de todos aqueles alunos. Alguns olhares tocavam em mim, como se esperava uma resposta. Bem, eu sabia que devia algumas. Eu e Ana não tínhamos somente a Pauta. Tínhamos, também, um grupo de resistência e poesia de rua, chamado "Clã Orenda". Renata fazia parte e alguns outros alunos espalhados por aquela sala, pela escola e pela cidade toda, que estavam curiosos. Ana tinha morrido e eu não sei se estava realmente pronto para lidar com os dois projetos.

ORENDAWhere stories live. Discover now