10) Intimidade (primeira pessoa)

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Eu sempre quis ser filho do universo

Ser herdeiro dos cânticos, criador de criaturas,

Ser visto, ouvido e expandir-me às alturas do possível

Eu quis ser livro, sinfonia louca, gigante azul, estátua e canto das sereias


Mas hoje,

Nesta madrugada opaca e silenciosa,

Abafada do tráfego longínquo,

Distante quilômetros e milhas das outras janelas,

Não há nada mais que eu quero ser que um pequeno animal frágil no seu colo.


Eu quero ser um ninguém de peito aberto,

Visto, ouvido, sentido, cheirado e provado,

Uma letra disforme de um dueto

Uma caneta que você segura para escrever-se,

A mão que abre a sua, e apenas a sua concha,

O seu quarto, o seu toca-discos numa cidade distante,

As pétalas de rosa que você retira, uma a uma,

O sonho laranja de um dia monótono


Hoje, nesse quarto à meia luz,

Dentro dessas paredes recém-pintadas, como quadro do XVIII,

No nosso museu de cheiros pós-urbanos,

Eu só quero me abrir e ser exposto,

Entregar-me à sua cozinha como colher de prata

E ser usado

Entregar-me à sua biblioteca como folheto de mimeógrafo

E ser lido

Entregar-me à sua curadoria como obra interativa

E ser seu.

Tentativas DesregradasWhere stories live. Discover now