Capítulo II: Sobre pântanos e ataque de pelancas

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O homem acordou com o cheiro de queimado, a fogueira crepitava e o soldado viu a coroa amarela antes de ver a menina, era o amarelo que brilhava, não era a fogueira refletindo a luz nas flores, era o contrário, as flores emanavam a luz que refletia no fogo. Ou seria um delírio da dor que ainda consumia todo seu corpo?

A menina parecia estar arrumando mais alguns galhos para manter o fogo acesso, a noite era longa e a escuridão profunda.

- Vejo que acordou – disse Beare – eu tentei tirar o escudo do seu braço para limpar melhor a ferida mas não deu, é o fardo que você carrega? Achei que fosse me deixar durante alguns períodos. Você luta bem, mas parecia cansado. Você luta a muito tempo? Sua roupa é de soldado, né?

O soldado percebeu que estava com a farda cada vez mais rasgada, mais uma daquela e não sobraria nada para ele se identificar com seu reino, exceto a insígnia, a insígnia sempre apresentava seu valor.

- Obrigado.

A menina sentou do outro lado da fogueira improvisada, finalmente sentando, Willahelm pode ver que ainda estavam na clareira.

- Por que o escudo não sai? Você nasceu com ele? A quanto tempo o tem? Você toma banho com ele? Será que ele será um tributo para o pedágio? Estou interrompendo seu descanso? Você vai querer ir comigo?

O homem encarou o escudo esperando que ele se pronuncia-se sobre aquilo, mas este parecia estar quieto por ora, talvez satisfeito, talvez perdido em meio a conversa.

- Você é de onde? Seu sotaque é engraçado.

- Terras distantes, onde meu rei reina e eu guerreio.

- Você veio parar aqui como?

- Navio.

- Por que você é tão seco?

- Eu devo te acompanhar, é o melhor – o homem sempre cumpria com sua palavra, afinal. E o escudo não se pronunciou contrário, ele sempre sussurrava o que devia ser feito, desde a última derrota, quando o soldado deixou sua terra.

A menina ficou em silêncio, pela primeira vez.

- Tenho fome – a menina admitiu finalmente.

Willahelm ficou mais tocado do que achou que deveria e levantou-se com um tom de urgência que talvez não houvesse, a procurar comida por perto, até encontrar uma macieira, recheada com as mais belas maçãs que ele já viu.

"Tão prestativo, está tentando compensar o peso das memórias? Larga logo essa menina, quem se importa com isso?".

- Você não é de falar muito – constatou a menina – isso torna difícil para gente conviver. Eu falo muito o tempo todo. Vim de uma casa que todo mundo fala muito. Quer dizer, vinha. Meus pais não tão mais por aí. Tem muita maçã? Eu preferia ambrosia, mas acho que isso vai servir de igual. Normalmente só comemos vegetais na minha casa, não temos coragem de matar um bichinho lá de onde venho. Quer dizer, meu pai dizia que não, mas não sei o quão realista isso era, às vezes pensava que era só falta de alimento também. O inverno nos fazia ter que escolher entre alimentar os animais ou a nós.

- Sim.

A menina se calou de novo enquanto via o homem pegar mais maçãs, sete no total.

- Muito obrigado – a menina disse afinal – Eu cozinho muito, sabe? Aprendi desde pequena, não que eu seja grande. Mas sou mais alta que minha mãe. Era. Cozinhar é tipo meu lance. Eu adoro. Prefiro cuidar das minhas flores. Mas cozinhar é bom. Essa coroa de flores mesmo, com suas flores amarelas, minha mãe quem fez, é o único fardo que carrego nessa viagem. Ah, também sou boa com madeira. Também canto muito bem. E danço, dançar vai ser importante a frente.

A Estrada IpsocêntricaWhere stories live. Discover now