19 - O Comprador de Escravos

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Elohim entrou na sala com seu jeito peculiar e olhos que pareciam enxergar além do óbvio.

– Caro Luan, que dança cósmica é essa que nos trouxe novamente para o mesmo caminho, hein?

Luan instantaneamente sentiu um alívio da pressão constante de Natã em seus pensamentos, e se viu livre do peso de sua aura cinzenta perturbadora. Mas era estranho estar perto de Elohim depois de todas as tramas que levaram suas vidas até ali.

Luan não tinha certeza de como lidar com a presença dele. Então, permaneceu sentado com as mãos ainda trêmulas cobrindo o rosto, sentindo-se envergonhado e terrivelmente vulnerável.

Dandara fez um gesto para que o padrinho entrasse. Elohim, olhando para a figura abalada de Luan, tentou descontrair, sem cobranças ou acusações.

– Seu ninho é da hora! – comentou Elohim, observando a lojinha abandonada com certa nostalgia.

Luan, ainda em choque, ergueu os olhos por um instante fitando Elohim, mas logo voltou a mergulhá-los entre as mãos.

Também abalada, mas tentando melhorar o clima, Dandara comentou: – Vou dar um pulinho na padaria da esquina para buscar algo para tomarmos um café da manhã, pode ser, Elohim?

E com o consentimento do padrinho, que lhe entregou algum dinheiro, saiu seguida por Luke, que não perdia uma oportunidade de passear.

Elohim sentou-se ao lado de Luan, percebendo suas lágrimas. Luan tentou se levantar, talvez buscando uma distância segura de Elohim, mas sua fraqueza o traiu. Caiu de volta no sofá, exaurido pelo tempo passado sem dormir, sem comer e sem paz.

Com um tapinha gentil nas costas de Luan, Elohim disse afetuosamente: - Vai ficar tudo bem! Não há nada que um café não possa melhorar.

Luan, sem palavras, aproveitou o momento de rara pausa da tormenta mental, encostou-se no sofá, fechou os olhos e respirou profundamente, absorvendo a paz do silêncio ao seu redor. Era uma dádiva não sentir a presença opressiva de Natã; parecia até um milagre!

Ele ainda se indagava sobre o porquê de Natã se afastar tão repentinamente quando Elohim chegou, mas não estava em condições de investigar o assunto.

– Deita aqui. – disse Elohim, levantando-se do sofá para sobrar mais espaço, e Luan obedeceu.

Elohim entendia bem o que Luan estava passando, afinal também havia enfrentado o controle de Natã, no ato que resultou na trágica morte da Ísis.

Logo, Dandara chegou, falando empolgada sobre as coisas que havia comprado para o café da manhã, sendo interrompida por Elohim, que fez um gesto de silêncio apontando para Luan.

Entendendo, ela disse baixinho: – O café dele vai esfriar.

– Acho que esse é o menor dos problemas dele. – com sensatez, Elohim respondeu.

Luke pegou um pão com satisfação das mãos de Elohim e foi comer deitado aos pés do seu tutor, que parecia dormir com os anjos.

– Você viu o que estava acontecendo aqui quando você entrou? – sussurrou Dandara enquanto tomava a sua refeição com Elohim.

Elohim balançou a cabeça afirmativamente, um pouco preocupado: – Agora você acredita? - perguntou, tendo um gesto afirmativo como resposta, e concluiu: – Isso realmente precisa acabar!

Esperando Luan acordar, padrinho e afilhada colocaram a conversa em dia, e assuntos nunca antes revelados à Dandara vieram à tona. Dandara percebeu-se, mais do que nunca, parte daquela família, como se a sua adoção tivesse um propósito que ia além da sua compreensão, e se viu na responsabilidade de ajudar Luan e, inclusive, Natã.

Luan que estava despertando após mais de três horas dormindo, ainda conseguiu ouvir algumas revelações, e pôde entender um pouco do que estava acontecendo.

– Ele está acordando, vou buscar outro café. – disse Dandara, mostrando que ainda tinha uns trocos no bolso e voltando à padaria.

Elohim esperou o tempo de Luan e, quando este se sentou no sofá, convidou-o para comer, mostrando as várias opções que haviam na pequena mesinha de centro em frente ao sofá. Logo, Dandara voltou trazendo um copo grande de café com leite, e Luan se fartou, ainda silencioso.

– Elohim! – Luan finalmente teve forças para questionar: – Como você conseguiu afugentar Natã desse jeito? Ele fugiu de você como o diabo foge da cruz!

Elohim riu satisfeito e respondeu: – Nesse caso, eu sou a cruz?

– Parece que sim. Eu nunca havia visto o Natã assim. Ele costuma ser todo poderoso e dominador, mas ao te ver, ele parecia um cãozinho assustado com o rabo entre as pernas.


Elohim lançou um olhar enigmático a Luan e disse: – Acredite, meu amigo, o poder que alguém tem sobre nós muitas vezes é só a nossa sombra projetada.

– Não, ele realmente tem poder! Senão, como ele entraria dentro do meu corpo e me controlaria? E ainda estilhaçaria o copo daquele jeito? – respondeu Luan apontando os cacos de vidro no chão.

– Isso foi assustador. – concluiu Dandara: – O copo se moveu sozinho!!

– Sozinho não! – explicou Luan: – Eu vi bem Natã pegando o copo com o olhar mais odioso e demoníaco que eu já vi, parecia um dragão, e deu um berro animalesco ao arremeçar.


Elohim com um sorriso respondeu: – Irmão, você tá coberto de razão, o Natã tem mesmo as manhas dele.

– O que realmente não entendo é por que estou envolvido nisso. Entendi que ele te odeia e eu estava com muita raiva de você e que isso o atraiu para mim... mas será que isso é o suficiente para eu ter que carregar esse tormento pela eternidade? – indagou Luan apavorado só em pensar que quando Elohim se afastasse Natã voltaria.

– Caro Luan, há mais tramas entrelaçadas nessa história do que você pode imaginar, mas isso é uma conversa para outra hora. Para começar, você vai ter que aprender a lidar com ele, e talvez ele reapareça mais nervosinho agora sabendo que eu estive com você. – disse Elohim esclarecendo.

– Não consigo nem imaginar isso, estou exausto dessa escravidão! – Luan desabafou com seu olhar cansado.

– Escravidão: essa é a palavra. – Elohim confirmou, sentindo o peso de uma história antiga.

– Eu não entendo. – Luan murmurou.

– Eu não ia falar sobre isso agora, mas já que você comentou... – diz Elohim com hesitação.

– Fala logo, Elohim. – pede Luan, impaciente.

Elohim, sabendo que é chegada a hora de esclarecer Luan, conta a história longínqua de quando foi pai de Natã, exatamente a mesma história que Natã havia lhe contado, fazendo Luan confirmar sua veracidade em detalhes.

– Tudo isso é culpa sua, Elohim! Toda essa história, a história da Ísis, tudo o que fez da minha vida esse inferno que está hoje! – Luan o acusou raivoso.

– Realmente fiz escolhas erradas, meu caro, e isso é uma sombra que me persegue até hoje, inclusive porque isso me levou ao ato que tirou a vida de uma pessoa que era uma das poucas que eu poderia chamar de amiga, você sabe! – Elohim confessa com a dor do passado refletida em cada palavra.

Apesar do tom comovente de Elohim, Luan despeja mais palavras carregadas de ressentimento: – Você é um desgraçado; levou Natã para esse abismo sem fim, destruiu a vida da Ísis e me incluiu nessa desgraça!

– Quem não erra, irmão? Mas já faz uns dois séculos que isso aconteceu e Natã trata como se fosse hoje, não consegue se livrar do rancor, isso é que o leva para o abismo. E a Ísis não me culpa por nada, já estamos em paz, ela entendeu o nosso processo. – Elohim afirma categoricamente.

– Processo? Essa é boa. – Luan retruca com seu tom amargo.

– Só te sugiro que não siga por esse caminho de revolta, Luan. Esse é o mesmo caminho que Natã trilhou, e olha só onde ele chegou. – Elohim enfatiza.

Luan, reflete por instantes sobre as palavras de Elohim e conclui: – Você é quem deveria resolver essa história com Natã e fazê-lo me deixar em paz! É sua responsabilidade, você foi o causador de tudo isso, eu sou só vítima nesse jogo.

Elohim, sem se sentir afetado, diz introspectivo como se falasse sozinho: – "E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará."

– O que?

– Luan, você quer realmente saber a verdade? – indaga Elohim.

– Que verdade? Você vive fazendo mistério... a verdade é que eu nunca devia ter cruzado o seu caminho, você desgraçou a minha vida. – Luan diz rude.

Dandara, que observava a acalorada conversa, pede aflita: – Elohim, o Luan precisa se recuperar de tudo que passou. Talvez seja melhor deixar essa história de lado. Ele já passou por tormentas demais.

Porém, Luan sarcástico, lança uma última provocação: – Afinal, que verdade misteriosa do além é essa que você tem?

Elohim, ciente do impacto que suas palavras teriam, reflete, e acaba revelando: – Luan, você também faz parte do meu passado e... – com uma pausa dramática conclui: – ...e do passado do Natã também. Nada que você viveu foi por acaso!

– Você está tentando transferir a culpa para mim?? – Luan o questiona com tom de acusação, mas Elohim responde pacientemente:

– Sabe quando mencionei que vendi Natã quando ele ainda era meu filho?

– O que isso tem a ver comigo? – Luan interrompe confuso.

– Você foi o comprador!

Fim da Primeira Parte

Casulo - Os ReencarnadosWhere stories live. Discover now