Capítulo II

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Capítulo II

Outro outono, em outro rio. Bem distante da tragédia da guerra, uma alma insuspeita está prestes a ser tragada por aflitivos desdobramentos...

Os músicos empenhavam-se no cavaquinho, pandeiros e tamborins, a voz do cantor compondo perfeita harmonia com os instrumentos. Os corpos se movimentavam contagiados pelo salão, vários deles colados uns aos outros. O samba de Donga preenchia o recinto de calor, contrastando com o clima mais ameno de maio naquela cidade conhecida pelo sol tão intenso – ainda que justamente dele viesse seu charme.

Desta vez não há castigo

Se vais à Penha comigo

Tu tens que me dar vantagem

Vais pagar minha passagem

Carregar minha bagagem...

James, no entanto, permanecia à margem do festejo. Com seu copo de cerveja na mão, observava o vai-e-vem dos casais e a alegria das rodas em sutis acenos da cabeça acompanhando as notas da música; um dos pés balançando para lá e para cá no evidente recado que queria dançar, ainda que seu dono não permitisse.

Estava no Brasil há quase um ano, e ainda não se sentia plenamente acostumado. Não que não fosse sua vontade: queria e muito se habituar à pátria da mãe – onde a vida, embora com dificuldades totalmente distintas dos Estados Unidos, mostrava-se tão mais terna e colorida. Aprendera bem o português, conseguindo falá-lo quase sem sotaque. Além disso, seu nome possuía boa sonoridade na língua local, os falantes ficando espantados ao descobrirem que a tradução mais aproximada era "Tiago".

Perder a timidez e deixar o samba contagiar seu esqueleto retraído desde a infância, entretanto, era missão que nem o Rio de Janeiro conseguira cumprir.

Eu bem sei que tu não gostas

Mas juro que nesse dia

Vais me carregar nas costas...

Dois rapazes cruzavam o salão entre os frequentadores, segurando garrafas de cerveja – um deles esbarrando num grandalhão trocando passos com sua esposa e por pouco não arrumando confusão. A contenda foi esfriada pela fala mansa e gestos apaziguadores do outro componente da dupla e, resolvida, permitiu que esta continuasse seu caminho até James.

– Como assim? – o garoto do encontrão questionou indignado. – O que está fazendo parado aí, gringo?

Apesar do termo, James sabia que Chico não tinha intenções hostis. Era só mais um dos vários apelidos pelo qual o tratava, demonstrando bem mais carinho que zombaria.

– Talvez tentando não encostar em alguém e arrumar encrenca, como você ali atrás! – o outro jovem, Almir, emendou brincalhão. – O James deve ter é razão!

– Você também? – Chico rebateu, subindo o tom para fazer-se ouvir além do samba. – Olhe bem... – esticando um braço, ele apontou à extensão do salão. – Há aqui muitas beldades às quais vocês gostariam de se encostar, não?

James soltou um riso sem graça, ao que bebericou mais um gole do copo.

– Está muito quente aqui, e gente do norte pode acabar derretendo pela falta de costume – Almir afirmou, dando uma piscadela ao amigo estrangeiro. – Vamos dar uma volta pela orla. Isso vai fazer o James relaxar.

Mesmo um tanto contrariado, Chico assentiu num gesto, pondo-se a caminho da porta. Logo o trio atravessava a saída do local, abandonando seu ar abafado.

À praia de Ipanema, os amigos foram recebidos pelo sopro fresco e salgado da brisa marinha, tanto o limiar do oceano quanto a moldura de morros em torno da cidade envolvidos pelos tons acobreados do pôr-do-sol.

Outono no Rio - DEGUSTAÇÃOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora