Capítulo IV

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Capítulo IV

Anjo e mortal, enfermeira e soldado... Das mais improváveis circunstâncias, a flor do amor desabrocha no campo de batalha. A questão é: será ela capaz de resistir ao furor do caos tentando destruí-la?

Ao despertar, o primeiro impulso de Jimmy foi ficar de pé – sendo impedido pela intensa fisgada na perna.

O tronco recuou de imediato ante a dor, a face assumindo uma careta – e, quando levou as mãos instintivamente ao ferimento, notou estar agora de calção, as pernas expostas. A perfuração da bala fora envolvida por ataduras, seu tom branco manchado de rubro. A extensão da marca não crescia, entretanto, dando a crer que o sangramento cessara.

O soldado viu-se sentado numa maca – disposta, por sua vez, sobre o que parecia uma bancada de pedra. A sala estava tomada pela penumbra, a luz do sol entrando por algumas janelas e compondo rastros brilhantes aqui e ali, porém incapazes de iluminar todo o lugar. Através de uma das aberturas, vislumbrou o minarete de uma mesquita, assimilando estar no andar superior de algum sobrado.

A figura de branco andou pelas sombras, o contorno do tecido que a cobria aludindo a um traje único; e Roberts lembrou-se do que ocorrera. Seu coração disparou quando ela virou o rosto a si, os olhos azuis ampliando a claridade esparsa do recinto e concentrando-a toda no rosto que os envolvia como uma moldura.

– Teve sorte... – ela afirmou depois de segundos encarando-o, baixando a face tal qual desconcertada. – A bala atravessou o músculo sem romper qualquer osso ou via sanguínea.

– Sorte é o que não falta ao bom e velho Roberts! – a voz de Ted brincou, o colega surgindo de um canto da sala e deixando-se iluminar por uma janela próxima enquanto limpava o rifle com uma flanela. – É só um ás na manga ser usado, e outro já estará à disposição!

Depois de um momento contemplando a moça, corrigiu-se:

– Neste caso, uma dama na manga...

A jovem ignorou o comentário e, diligente, começou a organizar utensílios médicos e equipamento cirúrgico até então dispostos numa bandeja sobre um móvel ao lado de James. Conforme ela usava uma pia para limpá-los, a cruz escarlate no centro de seu hábito brilhou forte como no beco por haver uma janela mais acima da parede.

– Obrigado – foi o que Jimmy conseguiu falar, a frustração em não encontrar asas nas costas da enfermeira não diminuindo em nada o fascínio que sentia por sua pessoa.

– Não precisa agradecer, rapaz – ela ergueu brevemente o olhar para responder. – Ajudar os feridos nesta guerra interminável é minha missão.

– Vocês são freiras enfermeiras, eu entendi certo? – Ted questionou.

– No meu caso, ainda não sou propriamente uma freira. Estou no final do noviciado. A Ordem de Santa Maria de Cléofas zela pelos enfermos desde sua fundação, há mais de duzentos anos. Quando ingressei no convento das Irmãs da Virgem, em Paris, aprendi o ofício da enfermagem. Fomos enviadas para cá ano passado, inicialmente para ajudar os afetados por um surto de peste.

– Então é mesmo francesa, como seu sotaque já entregava... Mas antes servia ao governo de Vichy, então? Os traidores que se alinharam aos nazistas? – fazendo uma pausa, Theodore trocou um olhar preocupado com o amigo à maca. – Você pode ter salvado o Jimmy, porém isso não quer dizer que seja confiável!

– Não servimos a qualquer governo específico, soldado. Só a Deus – ela respondeu tranquilamente, dobrando e guardando algumas toalhas. – Antes havia pessoas necessitando de nossos cuidados sob o jugo de Vichy. Agora o domínio é do país de vocês e seus aliados. Não importa: continuaremos zelando por todos.

Outono no Rio - DEGUSTAÇÃOOnde as histórias ganham vida. Descobre agora