Capítulo VI

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Capítulo VI

Um mundo em torturante conflito não tolera por muito tempo que uma bela e pura paixão se desenrole... O preço, sem delongas, passa a ser cobrado.

– Então você disse ao sargento que assaltantes te bateram, tirando vantagem de estar manco? – Ted inquiriu arregalando os olhos, conforme se sentava em sua cama.

– É, mais ou menos isso... – Jimmy coçou a cabeça, apoiando-se numa muleta para conseguir girar o corpo e acomodar-se no próprio colchão.

– Acho melhor já diversificar o repertório de desculpas, pois outras como essa não servirão muito tempo. Até sua aura intocável por ter levado um tiro tem limites, Jim. Ainda mais ao sargento!

O alojamento ficou próximo do silêncio enquanto os sons de Roberts tirando os coturnos e as calças ressoavam baixos pela penumbra. O amigo tinha o olhar voltado à mesma janela de onde fitara a cidade na noite anterior quando perguntou:

– Pelo menos você a encontrou?

Theodore viu a sombra de James assentir com a cabeça junto ao encosto da cama. Isso fez o companheiro se curvar curioso na direção do leito:

– E, bem... Seu devaneio de romance se tornou algo próximo da realidade?

Mesmo imerso na escuridão, o sorriso de Jimmy foi plenamente distinguível:

– Mais que isso: se tornou realidade.

Ted deu um soco meio surpreso, meio indignado na lateral da cama.

– Você ganha a promessa de dispensa da guerra, depois os beijos de uma noviça... – murmurou. – Queria saber quando é que vou me dar bem. Sinto como se estivéssemos num livro, e só James Roberts atraísse tudo de bom por ser o protagonista.

Jimmy não aguentou e riu. Estendendo-se sobre o travesseiro, tinha o rosto virado ao teto no instante em que comprimiu os lábios, ainda sentindo neles o toque da boca de Joana.

– Pretende vê-la de novo amanhã, presumo – Ted afirmou, nuca recostada às mãos ao deitar.

– Caso o destino continue sendo bom... – o enamorado suspirou, encarando a janela próxima a si. Se as estrelas brilhavam intensas no firmamento marroquino, nenhuma delas se equiparava àquela tornada luz de sua vida.

Na frustração de ter de esperar a manhã para voltar a contemplá-la, o soldado rendeu-se às trevas do sono. Conservava a esperança, porém, de que as acalentadoras lembranças daquele dia viessem em sonho revisitá-lo.

X – X – X

– Sei que a Ordem deve sempre auxiliar os necessitados, minha filha, mas você se ausentou o dia todo! – a madre mantinha um tom compreensivo, apesar da bronca. Lembrava a Joana sua avó materna, conhecida brevemente durante a infância antes de partir devido a uma doença. – Devia ter nos avisado antes de sair da catedral. Se não fossem suas irmãs...

– A senhora pode ficar tranquila, pois sabemos que Joana passou seu precioso tempo amparando os inválidos – Marie falou sem esconder o tom malicioso por trás das frágeis camadas de empatia. – Quantas pessoas ficaram mancas nos últimos tempos, com tantas balas disparadas aqui e acolá?

O interior de Lorieau ferveu, os vapores da raiva expressados ao contrair um dos punhos. Conteve-os, no entanto, simplesmente erguendo o semblante à superiora e comentando:

– Marie é sempre tão bondosa... Ouvi falar que seus dons extrapolam a enfermagem e ela tem se envolvido até no ofício de erguer muros de pedra.

Joana manifestou-se em francês, porém o trocadilho gerado pelas palavras "muro", "pedra" e "ofício" em inglês – algo próximo de "Wollstonecraft" – fez a face de Marie descorar e perder qualquer vontade de continuar provocando-a.

Outono no Rio - DEGUSTAÇÃOWhere stories live. Discover now