Do diário de Roselynn - I

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A única coisa boa da terapia foi a sugestão de escrever tudo o que me aborrecia de algum modo. Hoje o dia todo foi um aborrecimento, por isso eis me aqui, caneta em punho, altas horas da noite. Nunca me senti tão deslocada quanto agora, só eu percebo que esse não é o meu lugar.

Ficar no meio de tanta gente que não me conhece e age como se conhecesse é estressante. Além disso, homenagens póstumas são deprimentes. Todo mundo fica falando da pessoa ausente, recordando-se de boas histórias, rindo, para depois, quando acabam as palavras, caírem num silêncio incômodo.

Perdi a conta de quantas pessoas vieram me abraçar. É isso mesmo, abraçar! Pensei que já tivesse passado por esse constrangimento na igreja. Quantas vezes vou ter que falar que não preciso de abraços? É claro que estou triste, mais pelo que não vivi com o meu pai do que com sua morte. Bem, não sou insensível, afinal se ele estava sofrendo, que sentido fazia viver? Pelo menos sempre o vi com saúde e essa a imagem que vou guardar dele.

O importante é que tentei seguir à risca a sugestão do cozinheiro mal humorado. O que leva um homem relativamente jovem a virar cozinheiro em um bar? Não sei, aliás, nem me importo. O que sei é que calcei o meu melhor sorriso para enfrentar o dia. Meu sorriso se esgotou antes do fim da manhã, graças à caixa registradora. A velharia simplesmente emperrou. Um homem elegante esperava o seu troco e não havia jeito de fazer a gaveta abrir. Olhei para ele constrangida, mas percebi que ele poderia ficar ali eternamente que não ligaria, estava olhando para o lado. Discrição não é o meu forte. É claro que segui o seu olhar. Ele desembocou em uma mulher de cabelos tingidos de loiro. Em qualquer outra pessoa teria ficado ruim aquilo, mas nela não. A primeira loira não natural por quem eu nutri alguma simpatia. Ela não se deu conta do olhar do homem, pois em nenhum momento tirou os olhos do papel que lia. Devia ser algo muito importante. Será que era o horóscopo? Eu sorri com a possibilidade e meu sorriso só desapareceu, quando mais uma vez dei o comando para abrir e nada aconteceu.

Santiago surgiu não sei de onde, deu dois puxões, uma batida e um empurrão na gaveta e ao apertar o comando, ela funcionou. Senti-me tola porque ele fez parecer extremamente fácil.

Aprendi também que o balcão é meu. Além de me virar na caixa, se um cliente senta-se no balcão, sou eu quem deve atendê-lo. Se ele for comer, devo anotar o pedido, se for beber, servir-lhe a bebida. Seria tudo perfeito se não fosse por dois detalhes: Brian não entende a minha letra e me chamou algumas vezes para que eu, nas palavras dele, decifrasse os hieróglifos. O segundo detalhe, entendo tanto de bebidas, quanto de corridas de cavalo. Logo, além de cansativo, foi uma tragédia ter que aprender drinks na hora de servi-los e com a ajuda dos clientes.

- Pelo Jack e por que é nova aqui, não ligamos - disse um deles e eu sorri sem graça.

Por outro lado, percebi o quanto o velho Jack era querido. O bar não teve um momento sequer de paz. Por vezes, senti-me numa torre de Babel, muitas conversas paralelas e simultâneas. Aquela zueira toda me deixou um pouco tonta. Estou acostumada ao silêncio.

No fim da noite, estava exausta, contando as horas para fechar o bar, subir e descansar. Talvez rabiscasse um palitinho na parede, até que completassem noventa e eu estivesse livre. Era uma boa ideia, mas daria muito trabalho limpar as paredes e "ter trabalho" era algo que eu não queria, não quando fosse me desfazer de tudo.

Para terminar o dia, eu estava de costas pegando uma garrafa de vermuth quando ouvi uma voz firme e levemente rouca: "Selly?". Eu não esperava por tal lembrança, e a garrafa quase caiu da minha mão. Há pelo menos treze anos ninguém me chamava assim, foi como se eu estivesse nos corredores do colégio novamente. Virei-me na esperança de reconhecer um dos garotos que faziam parte da turma: Ray, Luke ou o Troy. O susto foi grande, porque o sujeito a minha frente estava devidamente uniformizado como um homem da lei e não era ninguém que eu me recordasse. Quer dizer, os olhos dele me eram familiares, mas o reconhecimento parava aí. Seja lá quem fosse, era bonito e me exibia um sorriso franco e cheio de saudades. Devo ter ficado com cara de interrogação, porque depois de um tempo ele se apresentou: Nathan Evans.

- Nate? - Eu repeti sem acreditar, e tenho certeza de que estava boquiaberta quando fiz. Costumávamos chamá-lo pelo apelido e era impossível eu tê-lo reconhecido. Nate era o garoto esquálido e nerd que quase não era chamado para as festas. Ele me tinha em consideração porque, das garotas da sala, fui a única que o convidou para a festa dos meus quinze anos e o tratei muito bem, como a qualquer outro convidado.

- Agora xerife Evans - ele sorriu e eu permaneci sem ação. Os anos haviam sido generosos demais com ele, piegas da minha parte, mas lembrei do lance do cásulo. Além de ter se tornado um belo homem, ainda tinha músculos e autoridade suficiente para se tornar o xerife. Não, nem a redação mais absurda que enterramos na cápsula do tempo poderia prever isso.

Foi em meio ao meu nada disfarçado assombro que senti o cheiro pela primeira vez. Uma fragrância suave, embora persistente, não soube definir se era gostosa. Cheguei a pensar que fosse perfume do homem fardado, mas não combinava com ele, pois era tão... Floral.

Nate monopolizou meus minutos até o fim do turno. Ainda bem que a cidade era pequena e não tinha ocorrências, pois o xerife passou mais tempo falando do passado do que eu gostaria. E olha que o meu passado fora bem melhor do que o dele. Ainda assim o homem, fez questão de se recordar tudo de bom e de pior pelo qual passara no ensino médio.

Até que não foi tão desagradável falar do passado, mas o melhor mesmo foi após o último cliente sair. Ir até a porta e virar a placa para "Estamos Fechados" me fez suspirar. Os músculos do meu corpo clamavam por um banho quente e uma cama. Santiago iria fechar o bar e eu quase o abracei por isso, pois meu sono estava me cobrando o fato de ter levantado às seis.

Então antes de eu subir, senti novamente o cheiro. Tive de segui-lo, pois era irritante, persistente. E, quando o segui, fui levada de volta ao balcão, mais especificamente, à região em frente ao último banco. Fiquei confusa ao perceber uma rosa negra no mesmo lugar do outro dia. Estivera trabalhando naquele balcão o dia todo e não vi quem pode tê-la colocado ali. Experimentando a sensação de déjà vu, apanhei a rosa com cuidado e a joguei no cesto de lixo mais próximo.

Rosas Para Você (Degustação) Where stories live. Discover now