1x18 - Afogados (Parte II)

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Trinta minutos depois, Dona Benta encarava, estupefata, a fotografia que por décadas julgara perdida. Pedrinho não omitira nenhum detalhe. De seu primeiro encontro a sós com Emília, à porta daquele mesmo quarto, até sua fuga desesperada da vila ribeirinha, Pedrinho contou para Dona Benta todo acontecimento macabro que já testemunhara no Sítio do Picapau Amarelo e até mesmo fora dali, ao revelar o que de fato havia ocorrido durante sua viagem a Montes Calmos.

- Disse que achou esse retrato na casa da Anastácia? - indagou Dona Benta, em um tom fragilizado.

- Foi sim, no meio de um monte de coisas ruins. E tem mais, eu também vi um retrato do pai dela. - Pedrinho sentia a garganta doer do tanto que já havia narrado. - O nome dele era Joaquim, não era?! É ele, Dona Benta, o monstro de uma perna só é ele! O Pai da Senzala!

A menção do nome fez Dona Benta voltar-se para Pedrinho com um olhar de pavor.

- E a Tia'Nastácia sabe. - afirmou ele, convicto. - Ela quem tá por trás disso tudo, eu tenho certeza! O Barnabé tentou me avisar. Ele tentou me ajudar, mas a Tia'Nastácia deve ter descoberto e...

Dona Benta irrompeu em lágrimas.

- Depois de tanto tempo... - balbuciou a senhorinha. - Eu achei que toda essa... maldade... que todo esse ódio, tinham ficado no passado. Perdemos gente aqui, eles perderam gente lá, tanto sangue... Mas vivemos em paz agora. A vida é boa aqui no sítio, não?

- É tudo fingimento. - retrucou Pedrinho. - A Tia'Nastácia...

Pedrinho deteve-se no momento em que Néia apareceu no meio do corredor. A empregada vinha varrendo o chão, mas interrompeu seu trabalho ao avistar ele e Dona Benta conversando. Pedrinho dirigiu-lhe um olhar desafiador. Pensando bem, era bastante provável que tivesse sido Néia quem (à mando de Tia'Nastácia, claro) havia fuçado seu quarto à procura daquele maldito saco de dinheiro. A desgraça de seu amigo Barnabé.

Detestando mais do que nunca a empregada, Pedrinho avançou até a porta e atirou-a sem cerimônia de encontro ao batente. Então, voltou-se com urgência para Dona Benta e disse:

- A gente tem que ir embora daqui. Eu, a senhora e a Narizinho. Antes que a Tia'Nastácia e o povo dela façam o que tão planejando fazer. Eu tentei dizer isso pro Barnabé, mas ele... não deu tempo de...

- Eu sei. - Dona Benta exibiu um sorriso solidário em meio às lágrimas. - Eu sei como é isso, meu filho. Eu tentei dizer a mesma coisa pro meu pai, que a gente tinha que fugir, mas não adiantou. Era tarde demais. Eles já estavam... aqui dentro.

Pedrinho só precisou de um breve instante para entender o significado das palavras de Dona Benta.

- A Emília.

- Eu devia ter desconfiado. - repreendia-se Dona Benta. - Logo que a Lúcia chegou, não demorou muito e aquela boneca dos infernos parou nos braços dela, que Deus me perdoe. Eu achei que a Lucinha só tinha topado com ela por aí. Se eu soubesse o que você me contou agora... de onde ela tinha vindo.

- Foi igual da outra vez, não foi? - indagou Pedrinho. - Foram os escravos que deram a Emília pra senhora?

Dona Benta fez que sim com a cabeça. - Com ela aqui, não teve nada que meus pais pudessem fazer. - disse, aos soluços. - Eu... eu trouxe pra dentro da minha casa o mal que destruiu minha família.

Partia o coração de Pedrinho ver Dona Benta daquele jeito. A senhorinha tinha o rosto vermelho como um tomate, e chorava sem produzir nenhum som, como se fosse uma criança indefesa. Ficava claro para ele que não havia nada que Dona Benta pudesse fazer para ajudá-los.

E foi aí que aconteceu.

De súbito, Pedrinho pulou da cama e correu para fora do quarto. Por pouco não atropelou Néia, que bisbilhotava bem atrás da porta. Isso, contudo, não o deteve. Um rompante de coragem como jamais havia sentido lhe arrebatava dos pés a cabeça, inflamando-o com a determinação para fazer o que precisava ser feito.

O SítioWhere stories live. Discover now