1x19 - A Curva Impossível (Parte II)

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Não chegava a ser uma ideia formada, mas a mera impressão de uma ideia, como os contornos de uma figura que ainda precisava ser colorida. Um pensamento ligeiro que apareceu e sumiu em um piscar de olhos, escorregando pelo canto de seu olho, fazendo com que Pedrinho voltasse sua atenção para a passagem que dava acesso ao escritório.

Pequeninas pegadas manchavam sutilmente o piso de madeira, produzindo um rastro úmido que ia da escada até a porta entreaberta do escritório.

Pedrinho seguiu os passos. Aproximou-se da porta e espiou lá dentro, antes de fazer com que suas dobradiças gemessem com um leve empurrão. O lugar estava impecavelmente limpo, como de costume. A única exceção eram as pegadas molhada no chão.

Sobreveio à mente de Pedrinho a textura da bolota de papel derretido em seu punho cerrado. Um segundo depois, era o olhar esbugalhado de Narizinho. Palavras ditas na manhã anterior ressoaram vívidas em sua mente: "Onde você encontrou?" - ele perguntara. "Com a Emília." - Narizinho respondera.

"Tava escondida dentro do vestido dela."

Pedrinho contornou a escrivaninha, recordando-se da estranheza que marcava aquela página do diário perdido de Dona Benta. 14 de junho de 1887 era a data, mas a folha, agora destruída, nem de longe parecia ser tão antiga. Sequer aparentava ter sido arrancada de um caderno. Pelo contrário, suas bordas eram lisas e bem definidas, quase como...

O esconderijo de Dona Benta havia sido violado. Até que haviam tentado recolocar a tampa no lugar, mas o encaixe não ficara perfeito, deixando assim o compartimento secreto da escrivaninha acessível por um simples puxão. Pedrinho tornou a abri-lo, constatando que alguém havia revirado o precioso suprimento de canetas-tinteiro, lápis e papéis de carta de Dona Benta.

Era isso.

Pedrinho encaixou o compartimento no lugar e subiu correndo as escadas. A impressão de ideia em sua cabeça havia adquirido forma, suas formas vagas consolidava-se, pouco a pouco, em uma certeza que colocava em cheque tudo o que havia se passado com Narizinho, desde o começo. Talvez tenha sido por isso que, de alguma maneira insólita, aquilo que viu ao retornar ao quarto de Dona Benta não chegou a surpreendê-lo.

Narizinho estava ajoelhada no chão, ao lado da cama. Por entre as mechas de cabelo encaracolado, o mesmo olhar arregalado de antes agora fitava o que ela tinha diante de si: uma folha de papel de carta, ricamente decorada, na qual Narizinho escrevia com um dos lápis de Dona Benta. Sobre o leito que ela antes ocupava, restava apenas o retrato de Dona Benta e Emília, o mesmo que Pedrinho havia roubado da casa de Tia'Nastácia, agora livre de sua moldura de madeira.

Pedrinho tomou em suas mãos a fotografia. No mesmo instante, Narizinho voltou-se para ele, mas a mão que segurava o lápis continuou a passear lentamente sobre a folha de papel. O olhar dela acompanhava seus passos, ao que um estreito filete de lágrimas precipitava-se pelas bochechas sujas. Não eram, contudo, lágrimas de tristeza. Era ódio o que havia no semblante de Narizinho.

Quando Pedrinho agachou-se diante dela, Narizinho parou de escrever. Pedrinho pôs um dedo sobre a folha de papel e a deslizou vagarosamente em sua direção. A escrita era errática e incompleta, mas estavam lá a mesma linguagem polida e a mesma caligrafia floreada com a qual por duas vezes já havia se deparado.

"eu nunca tinha percebido antes"

Os olhos de Pedrinho saltavam de um ponto a outro do caos de frases soltas que se espalhavam pela página.

"FIQUE LONGE DAQUI"

Pedrinho tentava pôr em ordem suas pensamentos como se fizessem parte de um imenso jogo de caça-palavras dentro de sua cabeça. À sua frente, a respiração de Narizinho se tornava mais acelerada e profunda.

O SítioWhere stories live. Discover now