1x22 - A Semente (Parte IV)

930 102 8
                                    

O frio espalhava-se pelas entranhas de Pedrinho a cada valioso segundo. Suas roupas, empapadas de sangue, exerciam sobre ele ainda mais peso, limitando seu movimento a um rastejar vagaroso. O círculo de Dona Benta parecia fechar-se cada vez mais ao seu redor, mas as velas da procissão negra em nada aqueciam seu corpo exausto. Faltavam-lhe forças até para chorar.

Pelo canto do olho, Pedrinho avistou Néia, em seus trajes de dormir, deixando a ala dos empregados. A criada avançou receosa pela sala, desviando de móveis que não estavam ali, e foi até a janela. - Que tá acontecendo aí?! Quem tá aí?! - perguntou, sem que nenhuma resposta viesse da turba que tentava forçar seu caminho para dentro da outra Casa Grande. - Ai meu Deus... Dona Benta! Dona Benta!

Néia subiu as escadas aos gritos, incapaz de enxergar Dona Benta bem ao seu lado. A senhorinha segurava a adaga na altura do pescoço de Pedrinho, e ele podia sentir o sangue pingando em sua nuca. Apesar disso, Pedrinho não quis pensar no fim. Preferiu imaginar o que estaria fazendo Narizinho, o quão distante dali ela estava, sem saber que a amiga jamais fora mais longe do que o milharal que por tantas vezes haviam explorado. Narizinho corria obstinada por uma das trilhas, deixando um rastro que conduzira o trio de cultistas direto até ela.

- Para aí menina! Não tem pra onde correr. - disse um deles quando ela finalmente parou.

Narizinho segurou com firmeza a alça do lampião, como ela havia lhe dito em seu sonho. Os outros dois homens de preto a cercavam, um de cada lado da clareira, fazendo estalar sob seus pés as espigas de milho mortas. Mas não era com eles que Narizinho se preocupava, nem com o terceiro, cuja sombra, cada vez mais próxima, o luar atirava sobre ela. No instante em que Narizinho levantou o lampião, fazendo cessar o avanço do trio, sua atenção estava voltada para o quarto homem. Aquele que abria os braços bem acima dela.

- Larga isso, menina. - disse o cultista. - Vai acabar se machucando...

Narizinho reuniu toda a força de seu braço magricela naquele arremesso. O lampião voou pelo ar ao mesmo tempo em que o homem se atirava sobre ela, derrubando-a junto à base da cruz. Ao colidir contra a estreita faixa de madeira entre o corpo e a cabeça de bola de futebol, o vidro explodiu e a palha ressecada foi banhada por óleo flamejante.

Em segundos, o Visconde de Sabugosa estava coberto de fogo. As labaredas o devoraram rapidamente, reduzindo sua forma de homem a uma pira ardente que logo cedeu, despencando para trás.

Muito longe dali, Dona Benta rolava Pedrinho sobre a estrela manchada de vermelho, expondo assim seu peito arfante. A adaga ergueu-se mais uma vez.

- Sanguine aqua est.

O rugido se fez ouvir por todos os que estavam no Sítio do Picapau Amarelo. Não importasse em qual lado da fronteira.

Os homens encarregados de levar Narizinho se entreolharam, em pânico, antes de se voltarem para a direção de onde tamanho horror ressoara. De onde estavam não conseguiam enxergar o fim do milharal, tampouco o riacho e o olho que se abria no morro mais além. Ainda assim, eles viram. No fundo de suas mentes, tal como haviam escutado o rugido monstruoso, eles viram.

Todos no sítio viram.

O pesadelo arrastou-se dolorosamente pelo canal rochoso, mãos imensas alcançando as bordas da fenda e agarrando-se a ela para trazer à existência o corpanzil inchado, esverdeado de morte. Braços e pernas brotavam da decadente massa de carne como apêndices atrofiados que, embora maiores que um homem, eram, ainda assim, desproporcionais ao resto. Tal qual se esperaria de uma criança.

O esforço do ser em locomover-se fazia abrir rachaduras sangrentas em sua carne pútrida, adicionando dor à melodia de rancor inenarrável. Seus berros horrendos, entoados no compasso de uma velha canção de ninar, ecoavam como se partissem da própria terra, violada naquele parto nefasto.

O SítioWhere stories live. Discover now