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E a garotinha de alguém foi tirada do mundo essa noite,
Debaixo de Estrelas e Listras.
(Carry You Home - James Blunt)

Julia

Sempre me esqueço que há locais mais frios que a minha cama quando fico muito tempo sem subir para o Norte. Sim, eu sei que estive em Washington há menos de um mês, mas juro por Deus que Boston tem alguma coisa que esfria ainda mais minha pobre bunda. Como um vento ártico ou como cair de bunda na neve.

Ah é, eu caí de bunda na neve. Foi algo até artístico, e me fez pensar se eu não deveria me tornar patinadora. Levo jeito para cair em coisas congeladas, ainda que a minha bunda discorde. Talvez eu devesse tirar férias no Canadá para tentar isso. Sim, é uma boa ideia. Posso tirar uma semana e aproveitar o gelo para quebrar o meu quadril tentando fazer algo bonito no gelo, que acabará com eu indo de ambulância ao hospital enquanto não sei se rio ou se choro. Os dois talvez?

Não paro de divagar sobre coisas irrelevantes, o que é ruim, porque estou no tribunal. Descobrir que o meu cliente mentiu para mim e estar morrendo de fome, faz o meu foco mudar de lugar. Volto a prestar atenção no mundo real quando percebo que o juiz vai falar em breve.

Não tenho dó do cliente, porque ele não só mentiu, como forjou provas com excelência e aparentemente contratou testemunhas para mentir também. Espero que elas saibam que estão encrencadas agora. Os advogados de acusação foram bons em escancarar a verdade, e até anotei discretamente algumas coisas que fizeram para chegar ao sucesso neste caso. Os outros advogados de defesa já possuem a derrota como segunda pele, e fico feliz por finalmente estarem como eu. Um deles me olha por ajuda, mas eu só balanço a cabeça.

Perdemos este caso, não há o que fazer. Até tentamos, ainda que fosse em vão, porque infelizmente é o nosso trabalho. Ele encolhe os ombros resignado. Conheço a figura e sei que é obstinado por vitórias, e vê-lo aceitar a verdade tão logo me faz saber que provavelmente estaremos em um bar rindo disso mais tarde, talvez um pouco bêbados, mas não muito porque ainda estou tomando os remédios. Contanto que não haja documentos de casamento perto, estou feliz com este fim para três semanas exaustivas. A dor de cabeça de amanhã é algo para amanhã, e não, não me importo nem um pouco com o fato de que com certeza me arrependerei disso ao abrir os olhos.

É um bom jeito de relaxar e esquecer dos meus problemas para o próximo caso, cujo a filha de um banqueiro assasinado em Delaware é acusada de sumir com as provas do crime e há indicações que foi o genro dele a planejar o crime. O suposto assassino será ouvido pelo juiz, e o julgamento tem previsão de três dias de duração. Dizer que estou ansiosa é pouco.

Com a aproximação do veredito, volto para o agora e recolho as minhas canetas e papéis e discretamente calço os saltos. O júri sentencia o mentiroso, fazendo todo o discurso final e um extra sobre o perigo da posse de armas. Eu não poderia concordar mais depois de ver as fotos da acusação e de, bem, trabalhar com isso desde os dezenove anos. Mas infelizmente ele ou eu não podemos proibir nada.

Agradeço mentalmente por estar livre do cliente, não me importando que tenha perdido o caso. Antes uma derrota libertária que uma vitória que seria uma culpa eterna. Por mais que eu tenha acreditado na inocência dele.

Junto os papéis depois que as legalidades terminam e o homem é levado por policiais, e sinto um tipo estranho de aperto no peito. Claro que não por ele, não tenho dó de gente que não tem nem a decência de ser honesto com pessoas que estão ali para ajudar. É uma pressão, nunca senti nada parecido antes.

Massageio o peito, me perguntando se o meu coração vai parar. Seria um momento oportuno, na hora que resolvo tirar algumas férias de verdade longe do inferno, ele cede ao estresse. Pensando na banheira do hotel, nem penso em sentar um pouco e respirar.

Piso para fora do tribunal, falando com um advogado de acusação sobre este caso, evitando pensar na reunião de divórcio em Vegas com o meu advogado mais tarde, quando escuto. O som é seco e breve. Claro, sei o que é, eu cresci vendo minha família praticar tiro. Há outra vez e outra, tudo num tempo de cinco segundos. Procuro de onde vem o som, e aí... sinto. Algo está em mim. Minhas entranhas fervem, e eu sei. Sei que essa queimação pertence a uma bala. Minha blusa está com sangue demais pra ter sido um só.

— Julia? — outro advogado de acusação chama alarmado, o rosto pálido como a morte.

A morte. Quem diria que ela seria tão dolorosa. Minhas pernas falham, e eu tento me segurar em... nada. Não há nada e nem ninguém perto de mim. Nada e nem... dor. Uma dor excruciante, pior que qualquer outra coisa que já senti, me faz engasgar. Ou talvez seja só o meu sangue enchendo as minhas vias respiratórias.

É muito pior que qualquer imaginação minha sobre, já que não é imediata. Eu daria tudo para ser levada imediatamente para o céu ou inferno.

— Dustin. — eu digo, a boca cheia de sangue, o gosto metálico infestando meus pensamentos — Não digam ao Dustin.

Mas ninguém me ouve. Caio no chão finalmente, infelizmente ainda consciente, e vejo a multidão se prostrar em volta de mim, com arquejos desesperados e celulares tirando fotos. E assim, eu que passei a minha vida inteira fugindo dos holofotes, fico no centro deles na hora da morte.

Engulo em seco, lutando para manter meus olhos abertos, ouvindo, querendo levantar e acabar com o infeliz que achou ser uma boa ideia me matar antes que eu pudesse pelo menos ter uma última refeição. Meu estômago dói, e não é de fome. É terrível. É sufocante. Enquanto tento me levantar, meu corpo grita para que eu fique quieta. Querendo me manter viva. Querendo fazer a dor diminuir, querendo viver, não morrer. Eu também quero viver, mas... porra, a morte não deveria doer tanto. Por que não chega logo se veio tão forte, merda?

Alguém segura meu braço, e eu vejo estrelas de tanta dor.

— Se você conseguir me ouvir, pisca uma vez, moça.

Pisco, e não abro os olhos mais.

Quando em VegasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora