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PASSADO
CEDRIC PHOENIX 

Na entrada de Davenport havia uma loja de souvenires para os turistas — não que houvesse muitos por ali anualmente. A maioria vinha no verão, para tentar a sorte de conseguir um vislumbre da migração de baleias-jubarte. Mas, no resto do ano, minha cidade natal permanecia pacata. Era exatamente como a réplica de Davenport dentro dos globos de neve vendidos naquela loja — que também vendia pequenas baleias de porcelana, símbolo da região.

Daisy tinha uma tradição com nosso pai. Todos os anos, no dia do seu aniversário, eles iam até lá e compravam mais um globo de neve, embora todos fossem idênticos. Aquele hábito cessou, é claro, quando Harry fora preso pela primeira vez. Nós tínhamos dez anos. Desde então, passei a levá-la eu mesmo para comprar os malditos globos — que eram mantidos na sua estante de madeira branca, ao lado da cama.

Cheguei à conclusão que a maioria dos nativos de Davenport acreditavam viver como a réplica da cidade dentro dos globos. Como se realmente houvesse uma redoma de vidro sobre suas cabeças, mantendo-os ilesos e protegidos do mundo cruel lá fora. Como se estivessem presos num mundo perfeito, onde nada pudesse atingi-los. E, mesmo após o assassinato de Amelia Barber, o primeiro que ocorria ali em muitas décadas, eles acreditaram que tudo voltaria ao normal se apenas trancassem Harry Phoenix, a maior fruta estragada daquele cesto, numa cela em Anchorage.

Eles não faziam ideia, porém, de que Harry não era o único. Não era sequer o pior. Percebi isso quando vi os Mayard pela primeira vez.

Muita coisa acontecia sob o nariz da comunidade perfeita de Davenport, e, talvez, no fundo, eles já desconfiassem disso. Apenas fingiam não ver. 

(...)

Eu estava saindo da escola após a detenção, no fim da tarde, quando trombei com Kennedy Salinger. Ela carregava uma pilha de livros nas mãos, como de costume. Estava vestindo uma camiseta rosa de mangas curtas com gola redonda bem fechada e calça jeans, os cabelos cacheados emoldurando seu rosto alongado. Eu estava andando no corredor em direção às portas de saída quando, ao passar pelas escadas, seu corpo colidiu com o meu.

Ela estava descendo, aparentemente de maneira apressada, quando se desequilibrou e caiu sentada no chão. Eu fiquei um segundo inerte, olhando para ela. O capuz do meu casaco de moletom cobria minha cabeça, mas provavelmente esse fora apenas um dos motivos pelos quais ela mal me notou. Além de parecer com pressa e agitada, Kennedy também aparentava estar transtornada.

Com um som alto seus livros se espalharam pelo chão ao seu redor e ela não os recolheu num primeiro momento. Ficou apenas sentada lá, cobrindo o rosto com as mãos.

Franzi o cenho, ficando preocupado.

Ela estava chorando?

— Ei, você está bem? — perguntei, me inclinando na sua direção.

Kennedy não respondeu. Seus ombros não estavam tremendo e ela também não emitia som algum, então descartei a possibilidade de que estivesse chorando, mas eu não tinha dúvidas de que o motivo de sua reação ia bem além de sua queda.

Depois de alguns segundos, ela afastou as mãos do rosto e se colocou de joelhos, começando a apanhar os objetos que caíram. Me abaixei e a ajudei. Segurei um livro que logo chamou minha atenção. Parecia ser algum tipo de doutrina médica, bem mais avançada do que as aulas de biologia que tínhamos no último ano do Ensino Médio. Era sobre anomalias cardiovasculares congênitas.

Levantei uma sobrancelha, intrigado. Certamente aquele livro não era da biblioteca da escola, era universitário e bem específico.

Não pude continuar estudando o livro por muito mais tempo, pois assim que terminou de juntar todos os outros, Kennedy estendeu o braço e o tomou da minha mão, se levantando em seguida. Ela fora bem rápida, mas não o suficiente para que eu não pudesse notar os hematomas em seu pulso.

O Inverno Entre Nós (BITTER COLD)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora