Capítulo 2

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Bernardo

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Bernardo

MINHA ÚLTIMA aula de saxofone tinha terminado.  Finalmente eu completei os meus 18 anos. Foi uma espera bastante sofrida, e a hora de  fazer o quê eu tanto planejei estava chegando. (Também era sofrida). Eu estava literalmente condenando a mim mesmo. Eu não aguentava mais. Tive três anos de minha vida para mudar de ideia e isso nunca aconteceu. Nunca vi motivos para isso. Eu estava triste e ao mesmo tempo aliviado de acabar com  todos esses sentimentos. Eu sei que eu iria
decepcionar o autor da vida, ele é tão bom. Nunca o culpei  pela minha decisão. Não era entre eu e ele, era sobre eu mesmo. Era fraco demais, insuficiente. Me sentia um lixo desnecessário. 

Ver e escutar todos os dias o que o meu pai falava e fazia comigo e a minha mãe estava me rasgando ao meio. A minha alma estava pedindo por alívio e eu simplesmente decidi atendê-la. É verdade que eu não sei o que me esperava do outro lado deste mundo azul. Porém a minha alma no momento tão pouco se importava. Superar a perda de alguém que ama era para poucos. Eu nunca vou superar a do Beto, ele era a outra metade de minha alma, e agora sem ele, ela não estava suportando a diversidade do mundo. Meu irmão era o meu apoio. O que me ajudava a enfrentar um pai cruel sem compaixão. Um homem sem escrúpulo nenhum, o meu corpo que o diga. Trago  marcas terríveis, dentro e fora de mim. Ser espancado diversas vezes a chicotadas era demais, o fardo era tão grande. Queria que Deus me perdoasse algum dia, pelo que eu vou fazer. Não queria ir para o Inferno. Será que existe perdão para a alma sangrenta e quebrada em vários pedaços que não aceita mais viver dentro do corpo que lhe foi dado? Sinceramente eu queria achar alguém que pudesse me dar uma boa resposta. Porque a que eu tenho não me agrada.

Eu leio a Bíblia todos os dias, eu sei o que era condenável e o que não era condenável a alma. Mas eu vivia como um condenado na casa do meu pai, vendo ele espancar e muitas vezes tomar à força a minha mãe durante as noites eram aterrorizantes. Tinha muita vontade de ir embora, porém não conseguiria viver com a consciência de tê-la deixado com um monstro, um demônio. Eu prefiro acreditar que aquele ser que mora debaixo do mesmo teto que eu não é humano. Seres humanos não podem ser tão cruéis assim.  Eu queria muitas vezes me afastar dele quilômetros e quilômetros, porém em meu coração, em minha mente, em minhas estranhas, saberia que ela viveria o pesadelo sozinha, e isso  seria  insuportável. Eu não entendo porque coisas ruins acontecem com pessoas boas. Minha mãe era um ser tão bom. Angelina era a mulher mais incrível que eu já conheci. A levarei comigo em meu coração. Me dói imaginar que eu irei deixá-la sozinha. Porém eu tenho que colocar em meu coração que ela irá embora depois de mim. Fugiria para longe daquele cruel homem que é meu pai. Eu me odiava todas as vezes que sentia vontade de atacá-lo. Já quis matá-lo algumas vezes. Já visualizei o destruindo com minhas próprias mãos em noites chuvosas quando ele com a maldade que tinha em seu coração atacava a mulher mais bondosa. 

Chacoalhei a minha cabeça para expulsar esses sentimentos e pensamentos ruins de mim. Eu não sou assim, não sou igual a ele. 

Prestes para sair do prédio parei sem nenhum motivo aparente, olhei para o relógio e me lembrei que no segundo andar na sala dos espelhos ainda tinha ensaios. Talvez eu mereça ter pela última vez uma bela visão.  Nunca fui lá neste horário. Talvez o jardim estivesse bem florido. É, um homem pode ter uma bela visão antes de morrer. É isso, a decisão estava tomada. 

Volto para dentro do prédio e vou para o segundo andar.

Caminhando em passos largos vou com saxofone pendurado no pescoço. Não ando com ele assim, coloco sempre na maleta, mas foi um dia especial. Até me arrumei mais. Estava com a camisa de manga comprida preta com os botões atacados até o pescoço. Como estava fazendo muito calor, as mangas estavam dobradas até o cotovelo. Meu traje era todo social e preto. Pensando bem… não foi diferente de outros dias, além dos sapatos era claro, que  também eram sociais.

 Penteei o meu cabelo com os dedos me sentindo um pouco nervoso.  Antes mesmo de entrar na sala dava para escutar que estava tocando o lago dos cisnes. 
  Lá vou eu!

Ao parar bem em frente à porta consegui ver a cena que talvez valesse a pena esperar mais um pouco.

Fiquei  hipnotizado na garota fazendo seus passos de balé delicados e precisos. Suas mãos eram graciosas. As pontas dos seus pés se firmavam no chão. Os seus olhos pareciam coloridos, cada um de uma cor diferente,  achei interessante. Não dava para ver com precisão a cor deles. Sua boca rosada estava entreaberta. Ela girava em seu próprio eixo com precisão. A garota me encantou no momento que a vi. Quanto mais eu conhecia as maravilhas de Deus, mas eu me encantava com a habilidade e delicadeza de suas obras. 

Eu entrei e fiquei no canto da sala sem saber se poderia (eu nem me importava). Talvez fosse um sonho e eu estivesse dormindo em algum lugar como sempre acontece. Por um momento não conseguia ver mais nada a não ser a garota. Ela me parecia que estava dançando em câmera lenta.

Para o meu lamento a professora pausou o som e a garota também parou. Eu inclinei a minha cabeça para o lado sem conseguir desviar o olhar um segundo sequer do seu rosto arredondado. Ela levantou os seus grandes cílios e percebeu que estava sendo admirada.  O seu olhar cruzou com o meu e ficamos presos um no outro. Foi tão emocionante, nunca tinha sentido aquela sensação. Queria conhecê-la, saber qual era o seu nome. Ela era tão radiante com os seus fios dourados. Deus só podia estar de brincadeira comigo, agora que isso acontece? Justo neste dia eu encontro alguém que minha alma se agrada.  Deus é tão improvável.

 — Deus, que brincadeira é essa? — sussurrei olhando para ela.
  — Lúcia, Lúcia! — a professora tenta chamar a atenção dela, que estava tão presa  em meu olhar como eu estava no dela

    Então era este o nome da garota que minha alma se agradou? Lúcia que significava “a luminosa”, "a iluminada" ou "aquela que nasceu com a manhã". Interessante.

    — Lúcia.— a professora insistia em ter a atenção dela .
    — Rapaz, você está tirando a atenção da minha aluna, por gentileza gostaria de se retirar para eu tê-la de volta? — todas as outras garotas deram uma risadinha me deixando envergonhado. 

  — Claro. Me desculpe por…
  — Não precisa. — Lúcia me interrompeu.
 — A senhora já tem de volta a minha total atenção.  Minhas desculpas. — envergonhada Lúcia olhou para mim por debaixo  dos seus longos cílios.  Um dos seus olhos eram verdes-claro, o outro não tinha certeza, mas parecia  âmbar, aquela cor de olhos de lobo. 
Ela era perfeita.

 — Nesse caso, pode ficar… 
 — Bernardo. — falei.
 — Bernardo. Apenas tente não chamar atenção para que eu possa terminar a aula.  — me lançou ela  um sorriso de cúmplice. Eu sorri pela primeira vez desde que entrei na sala. Eu gostei dela. Parecia ser uma boa professora.

Nas Pontas Dos PésWhere stories live. Discover now