Um poder hereditário, vitalício e, democrático

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Em minhas conversas sobre a monarquia constitucional e parlamentar ouço um argumento, um apenas, plausível, lógico e genuíno. É sobre o poder hereditário e vitalício – que o poder não pode ser dado a alguém que nada fez senão nascer numa família; que esta pessoa (o monarca) não deve ser mais apreciado que outra pessoa somente por ter nascido numa família específica; e não poderia ser atribuição exclusiva de uma família; pois todo poder emana do povo, e não de laços de sangue; e que todos são iguais diante da lei; e que "políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos pelo mesmo motivo" – Eça de Queiroz.

Sou, como Eça de Queiroz, um monarquista, e só o posso ser se tiver a imparcialidade suficiente para buscar os fatos, a verdade: as coisas como realmente foram, como realmente são e como realmente serão. Assim, sou forçado a concordar: o poder do monarca não deve ser dado pelo povo (pois sim, o poder de governo por um povo emana do povo – mas apenas enquanto há sua união política em torno de um propósito presente e de destino comum) a alguém que nada fez.

O que o príncipe fez? Por que ele, e não eu?

Ora, poderíamos pegar as estatísticas de custo-benefício (por não precisar de eleições a cada quatro anos; e dos custos comparativos de sustentar uma Casa dinástica ao invés de presidente, vice-presidente, ex-presidentes e suas famílias), IDH, enriquecimento de capital humano, liderdade de mercado, liberdade democrática, grau de felicidade da nação, etc. Todos indicam nos primeiros lugares as monarquias constitucionais parlamentares em detrimento das repúblicas presidencialistas e mesmo das parlamentares. Poderíamos entender então que aceitar um monarca hereditário pela força do hábito vale como um sacrifício para poder viver em tamanha paz e prosperidade. Contudo, uma consciência íntegra exige uma reparação. Aceitar sob justificativas estatísticas seria entender que "o fim justifica os meios" ou que "é um mal necessário". Assim não pode ser. Seria um princípio de corrupção.
Então, analisemos: o que o príncipe fez senão nascer?

Precisamos lembrar que existe sim um poder hereditário: é aquele que uma pessoa acumula e deixa depois da morte. E muitas dessas coisas são passadas para sua progênie. Pode ser uma boa reputação, riqueza, traços físicos, temperamento, habilidades... mas tudo isso pode ser perdido pelo herdeiro. A verdade é que esse poder existe e não pode ser ignorado. A lei é igual para todos, mas ela se aplica a pessoas desiguais. O príncipe herdeiro nasceu e depois disso recebeu a educação necessária para suceder o monarca. Recebeu a influência de suas habilidades, moldadas pelo exercício da monarquia para seu povo por toda uma vida. Recebeu a influência de tudo em sua volta, quadros na parede, vocabulário coloquial, lugares, pessoas, sonhos e leituras. Por ter nascido na família dinástica, é mais provável que ele seja a melhor pessoa para substituir o monarca. E, sim, o herdeiro pode por tudo a perder: seja por sua liberdade de não querer receber isso, seja por sua maldade de corromper tudo isso. Contudo, historicamente, é o menos provável; ainda mais em comparação com as repúblicas e seus monarcas eleitos, a quem chamam de presidentes, e os sucessores desses presidentes.

"Por que ele é príncipe, e não eu?" É a questão dos que consideram injusta a exclusividade de uma Casa dinástica. Essa pergunta poderia ser repetida para várias situações. "Por que ele é sorveteiro, e não eu?" "Por que ele é presidente da república, e não eu?" Ora, preciso admitir que existe a esperança de que qualquer um se torne sorveteiro ou presidente. E que esta esperança, esta possibilidade de escolha deve existir, sim – e isto é uma causa moral. Mas saímos nas ruas e não nos deparamos com um oceano de sorveteiros, e há um só presidente da república – e gerações passam sem jamais ter dado um só sorveteiro nem presidente. A chefia do Estado numa Casa dinástica não é um cargo predestinado e eterno, independente do que os membros da Casa façam. As diferenças entre as pessoas existem, o que faz uns aptos para vender sorvetes e outros para governar por um povo. Certas coisas são tão grandes que ultrapassam os limites do tempo que um humano vive. "Quem planta tâmaras não colhe tâmaras". Quer ser o rei? Não é impossível. Mas o poder da união de um povo em uma nação talvez seja algo como as tâmaras. Reis e rainhas morrem, sem herdeiros ou deixam herdeiros impossibilitados. Casas dinásticas envelhecem, fenecem, caem; e outras surgem, superam-nas e as substituem. O que está em jogo na verdade – na esperança de ser rei, ou queixa de não o ser –, não é uma causa moral, e sim, a pressa imediatista e, quiçá, a cobiça.

Por isso que por aqui, a cada eleição, uma nova aventura. Elege-se alguém que os partidos colocaram (ver o capítulo Representatividade e Monarquia) na lista de opções; uma pessoa cuja capacidade de convencimento será mais importante que sua capacidade de administrar; cuja herança moral é irrelevante de tão sufocada pelos interesses do presente. A surpresa é este dar certo; na monarquia, a surpresa é o príncipe dar errado.

Mas o cargo eleito é temporário e legitimado pelo povo. Ora, o fato de ser temporário já demonstra o fracasso antecipado e previsto. E essa suposta legitimação por votos, manipulada – uma extração via promessas inflamadas e panfletos abundantes. E ainda, por ser um monarca temporário, ele terá maiores preocupações em fazer valer sua vitória nas urnas em um curto tempo, custe o que custar. A limitação de um tempo para o chefe de Estado se é considerada a proteção contra um mal político, deve também ser considerada a promoção de corruptos, imediatistas, embusteiros e populistas.

Assim, nos deparamos com o que sobrou na peneira: a legitimação do herdeiro. Exitem praticamente quatro meios de legitimação:
* Religiosa;
* Força do hábito;
* Ideológica;
* Democrática.

A legitimação religiosa é tão forte quanto o for a religião do Estado, o que, em nossos dias, é um meio de legitimação inviável. A força do hábito é frágil, e depende mais de legislação interventora, às custas da liberdade e autodeterminação do próprio povo. A ideológica é uma forte maneira de legitimar o chefe de Estado, porém requer doutrinação, manipulação de consciências, supressão de minorias, e às vezes, extermínio. O meio mais autêntico de legitimar o poder político é pela vontade expressa pelos que têm desejo de a expressar, sem impedimentos nem constrangimentos. Assim, o voto de um povo deve ser voluntário e secreto. A expressão da vontade do povo não pode ser impedida: entendemos a obstrução moral e física (ameaças, compra, e aprisionamento). Mas existe outro impedimento: o temporal. O momento mais óbvio para o povo exercer o poder de voto é quando o escolhido para o cargo está a exercer. Na verdade, não importaria tanto quem está no poder, se ele pudesse ser demovido a qualquer momento e outro pudesse ser posto em seu lugar – só perderíamos recursos e tempo em busca do melhor monarca.

Portanto, chegamos ao entendimento que o herdeiro precisa ser legitimado no poder que emana da união do povo. Este poder se aglutina num interesse comum, e este interesse se personifica num monarca. Se não houver a clara expressão desse interesse, a legitimação logo não passa de ser por "força do hábito". Se faz necessário que, por Constituição, haja mecanismos para o povo poder expressar sua aceitação ou recusa do herdeiro. E mesmo depois da sua coroação, que o povo tenha como expressar sua insatisfação e mesmo depor o herdeiro. Caso a Casa dinástica já não seja tida por necessária ou representativa, o povo também deve ser livre para a depor e escolher outra. Enfim, precisamos reconhecer que um povo deve ser livre para escolher como se governar. Negar esse direito de autodeterminação dos povos é por uma mácula desde o princípio na legitimidade do Estado. Esta mácula é tida como um meio de evitar instabilidades, mas afinal, é outrossim, a prova incubada da dúvida da consistência desse Estado.

Existe um poder hereditário quer queiramos ou não. Um povo não surgiu do nada. Esse poder hereditário se não for reconhecido vai se manifestar no poder das mais diversas formas. Formas corruptas, ilegais, ilegítimas, de limites imprecisos, de consequências duvidosas. O poder hereditário é da ordem natural das coisas, e assim convém por prudência o reconhecer, legitimar e limitar. O poder do monarca hereditário e vitalício, com limites de exercício de poder, com legitimação democrática podendo ser levantada a qualquer momento (seja sobre a pessoa específica do monarca, seja sobre sua Casa dinástica) por plebiscito, e tudo isso bem definido na Constituição aumentará a estima, virtude e honra desse povo, e do povo pelo monarca. Assim estarão protegidos dos excessos da oligarquia – esta que tende a escolher os presidentes e se arvorar sobre o povo. Um povo livre, unido por que quer, por uma causa que deseja e conhece; que chegou ao reconhecimento de sua monarquia, e até alguns indivíduos desejam chegar à coroa, pela honra e dignidade ao longo das gerações de serviço ao seu povo tal como a Casa dinástica faz (ou deixara de fazer), e não por meio do imediatismo eloquente, conchavos, conspirações e golpes.

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