Parte I

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Os primeiros raios de sol invadem o quarto, despertando-me lentamente. É mais um dia que começa e com ele, mais um dia de trabalho.

Abro os olhos devagar, para me habituar à luz que habita o quarto.

Inspiro.

Expiro.

Hoje volto ao Orfanato para cuidar de todas aquelas crianças que, ou foram abandonadas pelos pais, ou ficaram órfãs e sem família.

Passo os meus dias no orfanato "Flor-de-lis", pois é ali que está o menino mais lindo e especial do mundo. Chama-se Enzo, nasceu com Síndrome de Down e tem 4 anos de idade. Dono de um sorriso contagiante e uma alegria única. Tenho uma ligação demasiado especial com ele. Tem olhos azuis profundos e intensos, capazes de apaixonar qualquer pessoa que se aproxime dele.

Levanto-me da cama, ainda meio ensonada de uma noite agitada, onde os sonhos sobre o passado teimam em visitar-me durante a noite. É sempre nessas noites que a dor mais aperta, mas é tarde para fazer algo para mudar o que aconteceu. Para ser sincera, talvez tenha merecido o que aconteceu. Não sei bem.

Hoje, Nádia vem comigo. Diz querer passar mais tempo de qualidade comigo, enquanto mata saudades das crianças que estão no meu coração. Eu sei demasiado bem o que ela realmente quer fazer.

Nádia é a minha irmã mais velha e sabe bem demais o que me levou a seguir este caminho, há 4 anos atrás.

A vida está sempre atenta a tudo o que fazemos. Ela acompanha-nos nos melhores e piores momentos. Ou ela nos ajuda ou ela nos castiga. E já fui castigada pela vida. Um castigo duro e cruel, que me destrói todos os dias. O meu crime? Ter-me apaixonado por alguém que os meus pais não aprovaram.

Quatro anos depois, não sei nada do único homem que amei, perdi o desejo de ter uma família e, pior que isso, foi-me tirado dos braços o fruto desse amor, o nosso filho.

Preparo a roupa que quero usar hoje, pego nas toalhas e caminho para a casa de banho, que está livre. Sou sempre a primeira a acordar, porque gosto de me preparar com calma e sem ter ninguém aos gritos pela utilização da banheira.

Tenho sempre 2 horas para tomar um banho relaxante e demorado. Nessas 2 horas, gosto de pensar sobre o trabalho, sobre a vida, sobre os meus pais, sobre tudo.

Já ouviram falar na expressão "o banho lava a alma"? Posso garantir que lava mesmo a alma. Deixo todos os problemas serem levados pela água quente, enquanto lavo o corpo. Ainda gosto de sentir os músculos relaxarem lentamente, mal recebe o calor. É bom, muito bom. Enquanto aqui estou, perco a noção da realidade, perco-me de quem realmente sou. Porque é aqui que me posso esquecer de tudo o que já vivi, é aqui que posso deixar de ser quem devo ser durante o dia. Não preciso ser forte, não preciso fingir que estou bem.

Banho tomado, pego na toalha grande e enrolo-a o corpo. Pego na outra, tiro o excesso de água do cabelo e faço uma touca com esta.

Limpo o espelho, revelando em seguida o reflexo de uma mulher magoada pela vida.

Há marcas do passado que ficaram. Os olhos castanhos ficaram escuros, a pele ficou pálida e o sorriso parece ter desaparecido. Vez ou outra dou por mim a perguntar quem é a estranha que vejo no espelho. Aquela não é que sou, não posso ser eu. Olheiras, tristeza sem fim, um rosto marcado com lágrimas de dor e perda. Há muito que não gosto do que vejo.

Para onde foi todo o brilho toda a paixão, toda a alegria de viver? Onde ficou o sorriso que me caracterizava? Tenho saudades de ser quem já fui, antes de o amor me ser negado. Tenho saudades de ser quem já fui ao lado daquele que fui obrigada a deixar para trás. Tenho saudades de ser feliz.

A AdoçãoWhere stories live. Discover now