CAPÍTULO II / LIQUIDAÇÃO DO ANO VELHO
Meia hora depois apeava-se Félix de um tílburi à porta de uma casa no Rocio. Subiu lentamente as escadas; a porta do fundo estava aberta; Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala, sem que o sentisse uma moça, que estava assentada perto da janela, com o rosto voltado para a rua.
— Cecília! disse ele.
A moça estremeceu e voltou-se.
— Ah! és tu. Tão tarde!
Félix aproximou-se, deu-lhe um beijo, e tirou-lhe o livro da mão.
— Tarde? disse ele folheando o livro; não pôde ser mais cedo; tive visitas em casa.
A moça contentou-se com a resposta; levantou-se e pondo-lhe os braços à roda do pescoço, perguntou:
— Jantas hoje com alguém?
— Janto lá em casa.
— Lá em casa? repetiu ela; e por que não cá em casa?
— Não posso.
— Tens visitas?
— Não.
— Jantas só?
— Janto.
— Preferes isso à minha companhia? murmurou enfim a moça com voz triste.
— Cecília, respondeu Félix dando à voz toda a doçura compatível com a rigidez da sua resolução, há circunstâncias que me obrigam a não jantar cá nem hoje nem nunca.
Cecília empalideceu. Félix procurou tranqüilizá-la dizendo que ia explicar-se melhor. Insensível às suas palavras, foi ela sentar-se no sofá e aí permaneceu alguns instantes silenciosa. Félix deu alguns passos na sala, aspirou as flores que tinham sido postas numa jarra, naquele mesmo dia, talvez para recebê-lo melhor; acendeu um charuto, e foi sentar-se em frente de Cecília. A moça fitou nele os olhos úmidos de lágrimas. Depois, como se os lábios tivessem medo de romper uma cratera à chama interior, murmurou estas palavras:
— E por que nunca mais?
— Cecília, disse o doutor deitando fora o charuto apenas encetado, eu tenho a infelicidade de não compreender a felicidade. Sou um coração defeituoso, um espírito vesgo, uma alma insípida, incapaz de fidelidade, incapaz de constância. O amor para mim é o idílio de um semestre, um curto episódio sem chamas nem lágrimas. Há seis meses que nos amamos; por que perderás tu o dia em que começa o ano novo, se podes também começar uma vida nova?
Cecília não respondeu; fitava nele os olhos, que, se eram ternos e buliçosos nas horas de alegria, eram naquele momento sombrios e profundos. Félix pegou-lhe na mão. Estava fria
— Não fiques abatida; o que faço agora não é novidade; ouviste-me dizer muita vez que a nossa afeição era um capítulo curto. Rias então de mim; fazias mal, porque era alimentar uma esperança vã.
— Era, interrompeu Cecília com voz trêmula; reconheço agora que era. Esperava, com efeito, que eu pudesse, com a minha constância, resgatar os erros que me pesavam na consciência. Agarrei-me a ti como a uma tábua de salvação; a tábua não compreendeu que salvaria uma vida e deixa-se levar pela onda que a arrebata das minhas mãos. Enganei-me. Não te faço recriminações; espero que me farás justiça...
— Faço-te toda a justiça, redargüiu ele; acuso-me eu mesmo de estar abaixo do papel de redentor.
Cecília não prestou atenção ao tom irônico destas palavras, nem sequer as ouviu. Levantou-se, deu alguns passos, encostou-se ao piano e pondo a cabeça entre as mãos soluçou à vontade. Mas essa explosão foi quase silenciosa e durou pouco.
YOU ARE READING
Ressurreição ♥ Machado de Assis
RomanceRessurreição é o primeiro romance de Machado de Assis, publicado em 1872. Embora considerada uma obra da primeira fase, romântica, do autor, seu romantismo é contido, moderado, sem os excessos sentimentais, reviravoltas na trama e final feliz do fol...