CAPÍTULO X / A ENFERMA

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CAPÍTULO X / A ENFERMA

A doença de Raquel era grave; durante alguns dias chegaram a recear um desenlace funesto. Os velhos pais quase enlouqueceram, quando o médico os preparou para a terrível catástrofe. A menina percebeu o seu estado, mas nem o medo da morte, nem a saudade da terra lhe fez doer o coração. Morria como flor que era. A mágoa era toda para os que a viam assim condenada sem remédio.

O médico assistente dera à moléstia um nome tirado não sei se do grego, se do latim. Na opinião da mãe, havia alguma coisa mais do que o nome e a moléstia; havia uma inexplicável melancolia, anterior à doença, uma espécie de tédio precoce da vida, se não era antes alguma esperança malograda, — ou mais claramente, alguma afeição sem esperança.

Para obter dela a confissão que imaginava, tinha D. Matilde o necessário tato e doçura: era mulher e mãe. Mas, ou porque nada houvesse realmente, ou porque quisesse levar consigo o segredo da sua melancolia, Raquel nenhuma confissão lhe fez.

Dois dias depois da visita de Lívia, Félix foi à casa do coronel. O coronel estava na sala, mergulhado numa poltrona, com os olhos parados e as feições abatidas pela vigília e pela dor. Quis levantar-se quando Félix apareceu à porta, mas este correu para ele e impediu o movimento.

— Soube anteontem do estado de sua filha, disse Félix sentando-se ao lado do velho pai. Disseram-me que estava mal...

— Mal, repetiu o coronel, definitivamente mal. A pouca esperança que tínhamos veio tirar-no-la o médico. O senhor não sabe o que é perder assim metade da alma.

Félix disse algumas palavras banais de consolação, e chegou até a falar de esperança; mais ainda que a esperança fala sempre ao coração dos desgraçados, o bom velho em outra coisa não acreditava mais que na morte.

Algum tempo estiveram calados; enfim o coronel rompeu o silêncio:

— Raquel é muito sua amiga, disse ele. Duas vezes perguntou pelo senhor.

— Desde quando está doente?

— De cama está há quinze dias; mas já sofria antes disso. A princípio não me deu muito cuidado; a moléstia, porém, agravou-se rapidamente, e tem ido a pior.

Foram interrompidos pelo médico assistente. Tinha este sido companheiro de Félix na escola. Ao vê-lo ali suspeitou que o tivessem mandado chamar; Félix apressou-se a explicar o motivo da sua visita.

— Em todo o caso, doutor, disse o outro, aproveito as suas luzes, e façamos, se lhe parece, uma conferência.

O coronel foi ver se Raquel estava acordada; voltou pouco depois e acompanhou os dois médicos à alcova da doente.

Félix foi o primeiro que assomou à porta; parou alguns instantes, impressionado com o espetáculo que se lhe oferecia.

Sentada à cabeceira da cama estava D. Matilde, descorada e abatida, com os olhos túmidos, e porventura cansados de chorar. Aos pés da cama via-se uma moça amiga da infância de Raquel, e sua dedicada enfermeira nesta ocasião. Ambas, triste e silenciosamente, contemplavam a doente.

Raquel estava branca como a fronha do travesseiro em que descansava a formosa cabeça. Tinha os lábios entreabertos e a respiração curta e difícil. O pequeno rumor que fizeram os médicos ao entrar um pouco a sobressaltou. Raquel abriu os olhos, que ardiam de febre.

Quando Félix se aproximou do leito e tomou o pulso da moça, esta olhou para ele e fez um gesto de espanto. Olhou depois em volta de si, como se duvidasse do lugar em que se achava. D. Matilde inclinou-se para a filha e disse:

Ressurreição ♥ Machado de AssisWhere stories live. Discover now