CAPÍTULO XVI / RAQUEL

13 0 0
                                    

CAPÍTULO XVI / RAQUEL

Quando Raquel ficou só atirou-se ao sofá, trêmula, fria, com os olhos secos, sem compreender bem aquele drama íntimo, mas sentindo-lhe já algum terrível desenlace. O que ela via claro é que a outra amava o mesmo homem, e com tal força que cedera a um impulso de cólera, tão contrário aos seus hábitos de brandura.

As reflexões de Raquel não passaram daí. Nem todas as almas podem encarar as grandes crises. Quer-se um espírito robusto para estas situações complexas. Raquel ficou simplesmente atônita e abatida.

Na chácara foi notada a ausência das duas. Viana deixou os hóspedes e foi à sala.

— Que faz aqui? perguntou ele à filha do coronel.

Raquel ficara perturbada com a presença de Viana, e ainda mais com a pergunta. Enfim, balbuciou uma resposta infantil.

— Estava pensando numa coisa, disse ela.

— Onde está Lívia? perguntou Viana sem atender à resposta da moça nem ao sorriso forçado que lhe entreabria os lábios.

— Creio que está incomodada; foi para dentro.

— Coisa de cuidado?

— Parece que não.

Viana deu duas voltas na sala e saiu para a chácara, pedindo à moça que lá se fosse reunir aos outros.

Félix, entretanto, viera até o jardim, que ficava em frente da casa. Mal havia dado alguns passos quando viu encostada à porta da sala a filha do coronel, com os olhos postos no céu, acaso pedindo a Deus que lhe estendesse a mão para subir até lá. Era sol posto, hora de melancolia; tudo ali em volta assumia a cor pardacenta e luminosa dos últimos instantes da tarde.

Félix caminhou cautelosamente para a casa, subiu por um dos lanços da escada, e surpreendeu a moça, dizendo-lhe:

— Está linda assim; mas nós precisamos vê-la cá fora.

Raquel retraiu o corpo sem ousar dizer uma só palavra. Félix estendeu-lhe a mão convidando-a a descer. A moça entrou para dentro; o médico deu ainda um passo, mas ela, fazendo um gesto suplicante, disse com voz aflita:

— Pelo amor de Deus, saia!

Félix não resistiu; desceu ao jardim e caminhou para a chácara a reunir-se às outras pessoas. Em vão buscava conjeturar a causa daquela súplica. Era impossível conciliar o procedimento de Raquel com a familiaridade e a confiança que entre ambos havia. A razão da diferença devia ser grave. Mas qual seria ela?

Os convidados retiraram-se cedo. Meneses e Félix foram os últimos que saíram, ao lado um do outro, ambos entregues a reflexões diversas, porque Félix pensava nas palavras de Raquel, Meneses na pergunta do menino.

A filha do coronel desceu ao jardim. Era noite fechada. Sentou-se num banquinho, e ali ficou em triste meditação. A pobre moça tremia de susto, de incerteza, de apreensão. Não ousava encontrar os olhos de Lívia; tinha-lhe medo, medo pueril, escusado, sem razão, mas enfim medo, e nada havia que tranqüilizasse a sua alma franzina e pusilânime.

Como benefício celeste, entraram-lhe a correr as lágrimas, até então retidas pela presença de estranhos. Ninguém lhas viu, que a noite era fechada e o sítio ermo; mas a aura estiva, que começava a bafejar a folhagem ressequida do sol, acaso lhe ouviu os soluços, acaso lhos levou ao seio de Deus. Veio então, de influxo divino, uma doce consolação às suas mágoas solitárias.

Não ousando voltar para dentro, determinou esperar ali o irmão da viúva, que fora acompanhar um amigo da vizinhança. Pedir-lhe-ia então para a levar no dia seguinte à casa de seus pais. Não hesitava entre a ternura deles e o ódio de Lívia.

Ressurreição ♥ Machado de AssisWhere stories live. Discover now