CAPÍTULO XI / O PASSADO

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CAPÍTULO XI / O PASSADO

— Serei indiscreto perguntando que passado foi esse? disse Félix depois de alguns instantes.

— Oh! descansa! Não me pesa nada na consciência; mas no coração...

— Amaste alguém?

— Amei a meu marido.

A esta resposta de Lívia seguiu-se novo e longo silêncio. A memória do passado a que ela tão misteriosamente aludira parecia doer-lhe na alma. Arfava-lhe o seio, e as mãos, em que o médico amorosamente tocou, estavam geladas e trêmulas.

— Não acreditas que eu possa compreender-te melhor que os outros? perguntou finalmente o médico.

— Talvez não.

Félix fez um gesto de despeito. A moça arredou o vestido e abriu espaço no sofá, onde o médico se sentou a um sinal dela.

— Talvez me não compreendas melhor que os outros, continuou Lívia, e com isto não quero dizer que sejas tão vulgar como os mais deles. Não o és; mas há coisas que um homem dificilmente compreenderá, creio eu.

— Nem quando ama? perguntou Félix. Lívia não respondeu; Félix continuou:

— Mas que passado foi esse? Posso não compreender-te, como dizes, mas saberei dizer-te algumas palavras de consolação, e dissipar com elas a tristeza que te ficar desta confidência, que não é um remorso, decerto.

— Amei a meu marido, começou Lívia, e toda a minha confidência se resume nessas poucas palavras. Tive uma paixão da primeira idade, quando o amor vem surpreender a ignorância do coração. Será esse o amor mais forte? Há quem diga que o primeiro amor nasce apenas da necessidade de amar. Pode ser. Hoje que te amo sinto que pode ser assim. Em todo o caso, aquele afeto dominou-me toda; cobrei uma vida que me parecia imortal.

— E ele?

— Amava-me, creio, mas não entendíamos o amor do mesmo modo; tal foi o meu doloroso e tardio desencanto. Para mim era um êxtase divino, uma espécie de sonho em ação, uma transfusão absoluta de alma para alma; para ele o amor era um sentimento moderado, regrado, um pretexto conjugal, sem ardores, sem asas, sem ilusões... Erraríamos ambos, quem sabe?

— Vejo que eram incompatíveis, interrompeu Félix; mas, por que exigir de todos essa maneira de ver e sentir, que é mais da imaginação que da realidade?

Lívia levantou os ombros.

— Estou explicando a situação da minha alma, continuou ela. Foi aflitiva e triste; não lha ocultei. Riu-se de mim. Era um homem apático e frio; honesto, é verdade, e bom coração, mas falávamos língua diversa e não nos podíamos entender. Confiei todavia na influência do amor. Empreendi a tarefa de o trazer à atmosfera dos meus sentimentos, errada tentativa, que só me produziu atribulação e cansaço. Fatigava-o com isso a que ele chamava pieguices poéticas; da fadiga passou à exasperação, da exasperação ao tédio. No dia em que o tédio apareceu conheci que o mal estava consumado. Quis emendá-lo e não pude. Tinha feito da nossa vida conjugal um deserto; e se a minha alma clamava contra o destino, minha consciência me acusava de um erro, o erro de haver perturbado a paz doméstica, a troco de um sonho que não veio. Não me faço melhor do que sou, bem vês; mas uma parte da culpa não será da natureza que me fez tão pueril? Tal é o meu receio agora, continuou Lívia depois de alguns segundos de silêncio; às vezes cuido que não vim ao mundo para ser feliz nem para dar a felicidade a ninguém. Nasci defeituosa, parece. Serás tu capaz de desfazer a apreensão ou corrigir o defeito?

A viúva concluiu estendendo-lhe a mão que o médico apertou entre as suas. Um sorriso de simpatia ou de comiseração, ou de ambas as coisas juntas, entreabriu os lábios de Félix. Nenhum deles falou; ambos pareciam conversar consigo mesmo. Enfim, a viúva repetiu a pergunta.

Ressurreição ♥ Machado de AssisWhere stories live. Discover now