CAPÍTULO XII / UM PONTO NEGRO

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CAPÍTULO XII / UM PONTO NEGRO

Lívia e Raquel estavam assentadas no sofá; o coronel, encostado a uma cadeira, consultava o relógio. Não consultava; tinha o relógio na mão, diante dos olhos, mas os olhos reviam-se na filha, enquanto esta respondia às perguntas da viúva.

— Aqui está a doente, disse Lívia apenas viu assomar à porta da sala o médico e o irmão.

Raquel voltou a cabeça, e não pôde reter uma exclamação de surpresa e de alegria. Félix adiantou o passo e foi apertar-lhe a mão.

— Então? não está salva? disse ele olhando alternadamente para as duas moças.

— Foi o senhor que a salvou, disse o coronel chegando-se ao grupo.

— Não fui; auxiliei a natureza, nada mais.

— Havemos de pô-la totalmente boa e viva como era antes, disse Lívia dando um beijo na convalescente.

Raquel ouviu este diálogo com um sorriso triste que parecia ainda mais triste naqueles lábios sem cor. Estava extremamente pálida e magra; os olhos, agora que o fogo da febre se apagara neles pareciam amortecidos e fundos. Ainda assim, não perdera ela a sua natural gentileza. Mais: a própria morbidez do aspecto como que lhe dava realce maior.

Talvez essa circunstância influísse na impressão que o médico agora recebia; pela primeira vez lhe pareceu Raquel uma mulher.

O coronel respirava felicidade por todos os poros. A alegria que perdera durante a moléstia da filha, voltava agora mais que nunca ruidosa e comunicativa. Era um velho palreiro e jovial, amigo da palestra e de anedotas, antes gracioso que chocarreiro, tendo aquela amável gravidade com que a gente se familiariza sem perder o respeito. De quando em quando olhava para a filha com olhos paternalmente namorados, então parecia esquecer-se do resto do mundo, porque o mundo inteiro, ao menos parte dele, que a outra parte lhe ficara em casa, estava ali resumida naquela franzina e alquebrada criatura.

— E promete-me que ma restituirá, disse ele à viúva, não corada, que ela nunca o foi, mas com aspecto de saúde, viva como era, e alegre, e até se quiser travessa?

— E por que não? Os ares são bons; os carinhos serão fraternais, e melhor que os ares e os carinhos, há de curá-la a natureza, e creio também que a boa vontade dela. Não é assim? disse Lívia batendo na face de Raquel.

A resposta de Raquel foi dar-lhe um beijo, e sorrir, não já tristemente como da primeira vez. A tarde caíra de todo. O coronel fez algumas recomendações derradeiras à filha, agradeceu à viúva e ao médico, meteu-se no carro e voltou para Catumbi. Lívia foi mostrar à amiga o seu aposento; Félix despediu-se de ambas e dirigiu-se para a porta.

— Volta? perguntou Lívia.

— Talvez não, minha senhora, respondeu Félix, cuja intenção positiva era ir lá tomar chá.

A presença de Raquel veio de algum modo alterar as relações dos dois namorados. Já não podiam ser freqüentes as entrevistas solitárias em que ambos se esqueciam do mundo e de si. Mais que nunca, procurou Félix recatar o seu amor das vistas alheias, por modo que, apesar da convivência que tinha com os dois, Raquel nada suspeitou entre eles. Alguma coisa adivinharia se reparasse que a viúva, quando estava com ela, quase que só falava do médico; mas, como ela também não falava de outra pessoa, parecia-lhe que era antes a viúva quem a imitava.

Por esse tempo começou Meneses a freqüentar a casa de Viana, com quem travara relações alguns meses antes. Félix fez a respeito dele um elogio sincero e merecido. O parasita acompanhou a boa opinião do médico com um entusiasmo que cheirava a bons jantares. O advogado correspondeu à expectação da viúva e não tardou que se tornasse familiar na casa.

Ressurreição ♥ Machado de AssisWhere stories live. Discover now