Episódio 3: Turbulência Não-Aérea

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!!!! AVISOS !!!!

Este capítulo possui cenas de canibalismo que podem trazer gatilhos e perturbar o leitor. Se você é sensível a este tipo de conteúdo NÃO LEIA!

Sempre tive vários medos, estranhos ou não eles estavam lá, alojados no fundo do meu coração e consciência

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Sempre tive vários medos, estranhos ou não eles estavam lá, alojados no fundo do meu coração e consciência. Incontáveis vezes me deparei com o horror de descobrir um deles num momento para lá de inapropriado e ali, sentado no banco do avião, observando a nave pública decolar e ficar à quilômetros de distância do chão, tive a maldita revelação de que sentia pavor da altura.

Não passou na minha mente o fato de que aquela não era minha primeira vez num avião, ou que até mesmo de helicóptero eu já me locomovi. Cego pela mais nova fobia, só conseguia pensar na morte prematura que sofreria caso aquele piloto não exercesse sua função plenamente.

Agradeci aos céus milhões de vezes pela minha brilhante ideia de levar remédios que causavam sono e retirei três da embalagem metalizada.

O efeito foi rápido e eficiente, dormi como um bebê e só acordei três horas depois, suado e ofegante.

Tinha encontrado Lydia em uma montanha, morta e com o rosto desfigurado.

Inpirei pelo nariz e expirei pela boca incontáveis vezes, regulando a respiração e evitando de pensar no sonho. Apertei o estofado com força, fechando os olhos até ver estrelinhas no escuro.

Quando estabeleci a calma, virei-me na direção de Felton e fui surpreendido por sua ausência no banco ao lado.

Deve ter ido no banheiro, pensei.

Aceitei a sugestão indireta do wendigo e me levantei, atravessei o corredor e esperei na frente do banheiro.

Decidido a ignorar os pensamentos desesperadores que me rondavam, os minutos que permaneci ali se tornaram cada vez mais angustiantes. Barulhos estranhos vinham de dentro da cabine e tudo o que queria era um alívio.

Bati na porta e fui respondido por um grunhido.

— Felton! — gritei numa altura considerável para não alarmar o avião inteiro. — Está tudo bem, cara?!

Os barulhos estranhos continuaram a sair do local, mas não eram apenas do Wendigo. Alguém estava ali, gemendo baixinho, como se estivesse sem força.

Bati novamente à porta e me empenhei em ficar próximo à ela. O som da bota chocando-se com uma superfície molhada chamou minha atenção.

Olhei para baixo.

Uma poça considerável de sangue saía do banheiro, molhando meus pés e roupas quando pulei, assustado.

A porta abriu em um clique, e eu não hesitei em empurrá-la e observar o objeto sumir na escuridão do banheiro.

O barulho aumentou consideravelmente e, o que antes eram grunhidos indistinguíveis, se transformou em sons nítidos de mordidas e gemidos angustiantes.

Entrei no banheiro usando a luz do meu celular como lanterna. O local estava imundo; canos arrancados, pia quebrada, louças despedaçada, manchas de sangue por todos os lados e uma figura encolhida num canto.

Andei na direção do perigo, a figura era dona dos grunhidos e mordidas, no colo desta estava a dona dos gemidos.

O sangue era maior naquela região, empoçado e escorrendo para fora no cômodo. A luz do celular não iluminava como o desejado, apenas estendia o verde do meu papel-de-parede para o ambiente e dava uma característica mórbida.

Sendo assim, me aproximei mais um pouco.

De acordo com o avanço dos feixes de luz às curvas da figura, pude reconhecer os ombros largos e o cabelo loiro rente à nuca. Também identifiquei a farda anormalmente maior de Felton.

Prendi a respiração e deixei que a luz alcançasse a pessoa nos braços do wendigo.

A barriga da mulher estava completamente aberta, em uma visão para lá de horripilante, Felton arrancava as tripas e as levava à boca, mordendo e mastigando com vontade.

Do pescoço para cima, arranhões e marcas de agressão quase animal se estendiam e manchavam sua feição.

Cabelos ruivos e lisos caiam sobre seus seios expostos, a pele esverdeada e os olhos azuis olhando para o teto sem enxergar muita coisa.

Puxei o ar com toda a força que tinha.

Era Lydia.

Daquela vez, não tive tempo para controlar a respiração. Acordei em um sobressalto e agarrei o braço de Felton com toda a força em tinha.

Em um reflexo impressionante, puxei uma sacola qualquer e a abri na frente do meu rosto, jogando para dentro dela um intenso fluxo de vômito.

Meu coração saltitava em desespero, não respirava porque estava ocupado demais com a bile nojenta que saía de minha boca e o corpo inteiro parecia estar em um acesso de pânico, tremendo e ricocheteando no estofado.

— Ei, Stiles! — Felton se alarmou.

Não estava em minha plena consciência, me recuperava do vômito ao mesmo tempo que o cheiro forte me levava a outro.

Só me lembro de mãos envolverem minhas axilas, me levantarem e me apoiarem de algo. Fui levado ao banheiro por uma força externa e lançado à frente do vaso onde trouxe à tona meu último fluxo de vitalidade que saía pela minha boca.

Caí no chão com força, os braços e pernas ainda tremendo como loucos.

Estava suado, sujo, provavelmente fedendo como um defunto e embrulhado em lágrimas.

O choque do sonho foi intenso a ponto de me fazer gastar quase trinta minutos me recuperando. Talvez eu tenha dormido, porque lembro-me de despertar do transe com uma toalha molhada limpando meu rosto e outra pousada em minha testa.

Estremeci de frio.

— O que está...? — murmurei.

— Shhh...

A toalha continuou a me limpar, estendendo-se para meu tronco que descobri desnudo naquele exato momento. Levantei o braço com certa dificuldade e segurei o pulso de quem estava ali comigo.

— O que... O que aconteceu...?

— Você está passando mal — Felton me respondeu de prontidão. — Não sei exatamente o que aconteceu enquanto dormia, isso você é que deverá me contar. E nem pense que vou aceitar qualquer tipo de desculpa. Está com febre e provavelmente ficará enjoado durante dois dias, pelo tanto que vomitou.

Não respondi nada — ou não tive forças o suficiente pra isso —, fui limpo e vestido novamente com roupas isentas do odor de vômito. Felton me ergueu e me ajudou a sustentar o corpo enquanto escovava os dentes.

Quando voltei à meu assento, percebi olhares curiosos e alarmados vindo em minha direção. Um deles era de uma mulher com olhos pretos e inquisitivos.

Já estava consciente, por isso, quando Marriott aprumou-se nas nossas poltronas e perguntou o que aconteceu, pude responder de forma rápida e objetiva:

— Costumo ter enjoos em aviões.

Não era a verdade, mas preferia culpar a altura do que minhas turbulências não-áreas.

Raiz de BabelWhere stories live. Discover now