[Capítulo 1] Miguel

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— Então é isso, pessoal. Precisamos produtizar todos esses fluxos manuais de finanças até o final do ano. É o único jeito de sermos aprovados na diligência e aí sim poderemos tornar a empresa listada na bolsa de valores. Cada time precisará considerar isso no planejamento e a gente discute melhor nos alinhamentos mensais para remover bloqueios e priorizar o que for necessário. Agradeço o tempo e disposição de vocês!

O pessoal começou a se levantar da sala de reuniões, um burburinho discreto tomando as paredes de vidro enquanto discutiam os próximos passos e estimavam o esforço necessário para fazer o que eu tinha demandado a eles. Donatello ficou sentado, esperando pacientemente que a sala fosse apenas nossa, para me dizer o motivo daquela cara azeda de quem comeu e não gostou.

Parei de projetar a apresentação de metas e dei uma conferida rápida no meu e-mail. Eu sentia falta de quando meu trabalho era só escrever códigos e testes, porque hoje em dia eu chegava perto da programação de fato só quando o mundo estava acabando e alguém do time tinha feito uma besteira grande demais para ser resolvida rapidamente por qualquer outra pessoa que não o criador do software original. No resto do tempo, com a empresa desse tamanho, meu trabalho passou a ser um montante de burocracias e discursos motivacionais, além de conversas difíceis e um milhão de reuniões e relatórios.

Eu precisava me lembrar constantemente que isso era algo positivo. Se a minha rotina estava daquele jeito, era porque a empresa deu certo, cresceu muito, empregava muita gente e facilitava o dia-a-dia de milhões de pessoas ao redor do mundo. Era isso que eu queria quando tive a ideia da solução, não era? Então, só me restava engolir e seguir em frente.

— Mica... — Donatello enfim começou a falar, cheio de dedos. — Você tem certeza que quer isso? Não te parece muito precipitado um movimento desses?

Cocei a barba com efusividade e, não contente, massageei também os olhos, para ver se tirava aquele torpor infernal do meu rosto. Eu até era paciente, sim, mas não aguentava mais aquelas perguntas.

— Tanto faz o que caralhos eu quero, Don. Os investidores querem fazer o dinheiro deles valer. — Expliquei, pela milésima vez. — Você sabe que, como meu gerente de tecnologia, você também tem ações da empresa como parte do seu pacote de benefícios. Se a gente abre capital, você ganha dinheiro por tabela. Achei que seria o suficiente para ter seu comprometimento com o plano.

Ele negou com a cabeça, olhando para o chão e parecendo mais cansado do que eu. As mãos na cintura e os lábios entre os dentes, tentando achar uma forma de colocar em palavras o desgosto, que, até então, tinha sido apenas em forma de questionamentos, mas que parecia ter raízes mais profundas.

— Escuta, eu sou um dos seus melhores amigos, não sou? — Acenei positivamente, estranhando o rumo que ele tinha tomado. — Então, você pode confiar em mim quando eu digo que isso vai acabar com a sua vida?

Ah, era aquilo de novo. O argumento de sempre. "Você precisa viver mais, Miguel". "Tem mais da vida do que só trabalho, Miguel". "Você vai ter um burnout, Miguel".

— Minha vida é o trabalho. — Dei de ombros, resignado. — Eu sei que você não concorda e sinceramente não precisa. Tá tudo encaminhado exatamente como tem que ser.

— Assim como o seu namoro com a Laís, não é?

— Exatamente como o meu namoro. E o que diabos isso tem a ver?

Não era segredo que Donatello não gostava dela. Na verdade, nenhum dos meus amigos próximos ou mesmo a minha irmã eram fãs da garota. Mas porra, eu tinha trinta e dois anos, ela era de uma família decente, não me enchia a paciência por ficar horas demais no escritório, não perguntava aonde eu ia e que horas voltava.

Querida CiganaΌπου ζουν οι ιστορίες. Ανακάλυψε τώρα