⥇ PRÓLOGO: EU, DR. TIMLIN E O CADÁVER

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Diário de William Bauren

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Diário de William Bauren

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ERA VÉSPERA DE HALLOWEEN. Lembro-me desse detalhe com bastante clareza, afinal, como poderia esquecer? Os acontecimentos daquele dia, e dos que se sucederam até o final das festividades da cidade, assombraram-me por um longo tempo e deixaram-me noites inteiras em um estado de pânico. Tudo aconteceu há mais de dez anos, em 1930, em uma pequena cidade ao noroeste dos Estados Unidos, Salém.

Mais cedo, naquele mesmo dia, minha irmã, Lauren, havia pedido que eu fosse até a hospedaria do velho Harrison e sua esposa, onde aconteceria a grande festa do all-hallow-tide, ou o festival dos três dias, o mais aguardado por todos os cidadãos da pequena cidade. Eles estavam, de fato, muito ansiosos, pois seria a primeira festa daquela magnitude desde a prisão do Açougueiro de Essex. As crianças, principalmente, estavam bem agitadas com a comemoração. Afinal, qualquer um entre os dez e dezessete anos gostavam de se fantasiar e bater nas casas alheias pedindo doces; halloween costumava ser época de alegria, era esse sentimento que preenchia o coração de todos naquela época do ano.

Lembro-me bem de ver a pequena Sophie saltitar pelas ruas, carregando uma abóbora pesada demais para seus braços curtos e finos; atrás da criança vinha a mãe, Hillary, que arrastava, com o auxílio de uma corda, um pequeno caixote de madeira lotado com abóboras de variados tamanhos e cores. Eu, observando da minha janela, acenei cordialmente e, deixando de lado minhas atividades habituais por alguns minutos, observei-as enquanto enveredavam pela pequena trilha de pedras em direção à velha plantação de milho nos fundos da propriedade dos Harrison.

Hillary era uma grande amiga do Sr. e da Sra. Harrison, então era de se esperar que os auxiliaria com as decorações para o festival.

Desviando minha atenção, vi que o céu estava parcialmente coberto e a brisa balançava as folhas com suavidade, fazendo-as cair dos galhos mais secos. O inverno estava se aproximando — como de costume para aquela época do ano — e logo iria anoitecer; então apressei-me, pois estava atrasado. Apanhei minha bicicleta na soleira da porta e fui encontrar Jane, que viria a ser minha futura esposa, na lanchonete. Ela estava linda, lembro-me que seus cachos estavam presos em um belíssimo penteado naquele dia e que seu vestido, verde-água, assim como seus olhos, deixaram-na ainda mais atraente. Éramos jovens e, assim como a maioria dos jovens, eu tinha o costume de perder a noção do tempo quando estava na presença de minha amada.

Algumas horas depois, quando o sol não mais pairava sobre a cidade, decidi que seria melhor acompanhá-la até sua casa. Dei-lhe um beijo na bochecha antes de soltar sua mão e aguardei até que entrasse. Em seguida, montei em minha bicicleta e pedalei, feliz como um passarinho, até que as formas geométricas da hospedaria surgissem em meu campo de visão. Os pilares mais altos quase pareciam cortar as nuvens ao meio, mas eu sabia que era apenas uma impressão. Apesar de ser a maior construção do bairro, não era tão alta assim.

Havia um grupo de pessoas reunido na rua quando me aproximei; homens e mulheres de diferentes idades se organizaram em círculo em frente à porta da Hospedaria. Todos olhavam, horrorizados, para o chão — mais precisamente, para o corpo nu ali estirado.

Ao me aproximar mais, observei que se tratava de uma mulher jovem e loira que, a julgar pelas condições de seu corpo, não aparentava ser muito mais velha do que eu. A frente do corpo da mulher estava voltada para a calçada; o cabelo cobria parcialmente as costas desnudas e a palidez de sua pele trouxe a ânsia enlaçada ao meu estômago até a minha boca. Não havia nada cobrindo as partes íntimas, como também nenhuma gota de sangue ao redor ou algo visível que pudesse denunciar a causa da morte.

Os murmúrios logo se transformaram em um falatório desenfreado, que, com toda a certeza, resultaria em bons boatos na manhã seguinte; as luzes do Hotel se acenderam, não tardando para o gerente, e dono daquelas terras, aparecer no topo da escada. Peter Harrison congelou assim que bateu os olhos na figura caída no chão, arqueando a sobrancelha, assustado, como se tivesse visto o próprio diabo em sua frente. Logo uma segunda sombra surgiu no topo da escada. Dessa vez, uma mulher — que depois reconheci ser a Sra. Harrison. Ela, boquiaberta, cobriu o rosto, assustada, e foi gentilmente afastada pelas mãos do marido.

— O que estão fazendo parados aí? — ouvi uma voz grave perguntar atrás de mim. — Ora, abram espaço imediatamente! — disse. — Não há nada aqui para ver! — era o Dr. Timilin, médico aposentado, agora legista da região. Ele gritou mais algumas palavras e em seguida focou toda a sua atenção no cadáver estirado.

Retornando para dentro do Hotel, Sr. Harrison puxou a mulher para junto de si. Alguns dos curiosos se movimentaram, abrindo espaço; outros se afastaram e foram embora; mas também haviam aqueles que não mexeram nenhum músculo, e eu estava inserido nesse terceiro grupo. Não demorou muito para que os policiais chegarem afastando-nos do campo de visão privilegiado, mas ainda era possível enxergar o que acontecia no centro do tumulto.

Vi quando o Doutor se abaixou ao lado da vítima. Ele carregava um lençol dobrado em mãos; provavelmente, pensei, alguém o avisou das condições em que o corpo se encontrava — ou talvez ele, simplesmente, estivesse acostumado com aquela rotina de crimes. Não sabia dizer, mas permaneci ali, observando enquanto ele cobria o corpo da mulher. Por algum motivo, eu precisava saber o que aconteceria em seguida. Ele vestiu uma luva de plástico branca e começou a examiná-la; levou dois dedos até o pescoço e em seguida até o pulso, checando se havia alguma pulsação. Balançou a cabeça, desapontado, e levantou a parte do pano que cobria suas costas, movimentou os fios loiros para o lado e tateou-a desde a nuca até a base da coluna vertebral. Não satisfeito, ele virou-a, com cuidado para cima. Parte dos fios loiros ainda cobriam a face, mas era possível ver seu rosto delicado por debaixo do cabelo bagunçado.

Lauren. — ouvi minha voz falhar ao dizer. — LAUREN! — repeti, sentindo algo estranho envolta do meu ombro, prendendo-me ao chão. Só então me dei conta de que alguns homens e senhoras que estavam ali ao meu lado me seguraram pelo braço, impedindo-me de dar mais algum passo à frente.

Dr. Timlin girou a cabeça em minha direção. Jamais irei esquecer o peso daquele olhar; ele dizia: eu sinto muito, garoto. Mas estava claro que ninguém sentia nada, ninguém sentia tanto quanto eu. Meu estômago embrulhou e um arrepio percorreu minha espinha quando eu vi aquela enorme mancha vermelha em sua pele clara, outrora cheia de rubor e vitalidade. Eram cinco manchas, na verdade; cinco linhas marcadas com líquido vermelho um pouco abaixo dos seios expostos. As lágrimas começaram a brotar e eu senti minhas pernas tremerem.

Minha irmã estava morta.

Aquela imagem perturbadora não me deixou descansar nenhum segundo após aquela noite. Seu corpo exposto, sem vida, e descartado na sarjeta como se fosse um invólucro gasto e vazio... Em seus gigantescos olhos castanhos, eu vi estampado o horror. Não havia nenhum hematoma ou poça de sangue no chão, não havia nenhuma marca de perfuração ou arma do crime, no entanto, minha irmã estava morta. Repeti aquilo mentalmente durante todo o tempo que permaneci ali, parado igual uma estátua e, mesmo assim, não fazia sentido, não parecia verdade... Não parecia real.

O médico passou os dedos da mão esquerda sobre o rosto de Lauren, fechando as pálpebras delicadamente. Aos poucos, o grupo se desfez; restando apenas eu, Dr. Timlin e o cadáver de minha irmã mais velha estatelado na calçada.

O pior, no entanto, era aquela certeza lacerante que dominava cada fibra dos meus ossos e cada pequena célula de meu corpo: Lauren, tão pouco, seria a última vítima.

Eu desejei não estar certo.

Noite Das Bruxas | CompletoWhere stories live. Discover now