Entorpecida - L.S. Costa

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Baseado em Branca de Neve e os Sete Anões


Ela sentiu uma boca tocar delicadamente a sua.

— Branca, acorde.

Odiava aquele nome politicamente incorreto, mas era branca, afinal de contas, de um branco anêmico, e o cabelo preto só realçava esse traço tosco de sua aparência.

— Branca...

Abriu os olhos. A visão estava turva.

— Branca... você está bem?

— Não... — a voz saiu rouca — sei...

Ele acariciou seu rosto.

— Você está no hospital, lembra-se do que aconteceu?

— Acho... que sim...

Ela se lembrava dos remédios. E lembrava-se de mais coisas. As sete crianças. A velha. O chá...


Voltou ao trabalho depois de uma semana. Nada era pior do que os olhares de desconfiança ou, pior, de pena. Aguentar isso e mais as dores de cabeça e de estômago era uma tarefa para a qual ainda não estava capaz.

Nessa mesma semana, choveu sem trégua. Na escola, o piso vertia água. Branca sentia os pés úmidos o tempo todo. O ônibus era um tormento maior do que o normal. Sua bolsa, livros, calçados, tudo estava molhado o tempo todo.

Foi na quinta-feira que Branca, que voltava para casa todos os dias depois do pôr do sol, conseguiu chegar mais cedo (só por causa da carona do marido). Quando abriram a porta, debaixo de chuva, perceberam que havia algo errado.

— Que barulho é esse? — perguntou ele.

Branca entrou descalça na casa que ainda era do banco. Foi direto para o quarto da criança, mas ele estava ileso. O marido entrou em casa e ambos se dirigiram ao outro lugar mais provável de estar alagado.

Chovia dentro da lavanderia como lá fora. Sua máquina de lavar roupas estava desesperadoramente molhada. Os baldes cheios de roupa suja que ela não conseguira lavar durante a semana toda permaneceriam cheios.

Branca começou a chorar.


Na sexta-feira, foram correndo abastecer o carro (que só o marido dirigia) e fazer compras antes que os preços subissem. Quando entraram no supermercado, percebem que chegaram tarde.

Batata R$6,10

Tomate R$8,60

Banana R$5,30

Arroz R$28,90

Feijão R$7,10

Leite R$7,20

Faltou dinheiro.


— Chegamos a mais um dia Três de Junho, para homenagear nossos sete pequenos anjos, que tiveram sua vida ceifada violentamente...

Branca odiava essa homenagem que se repetia ano após ano, apenas para cutucar mais a ferida.

— ...que invadiu nossa escola, outrora segura, e levou nossas crianças inocentes.

A escola nunca fora segura.

— ...que Deus ilumine a cabeça desses jovens.

Agora ela falaria da culpa dos videogames, aquelas armas do demônio.

— ...nossas orações aos pais e mães.

Que orações? Quem ainda acredita em Deus nesse mundo?

Era uma vez um final distópico - contosWhere stories live. Discover now