Pessoas de mentira - Aurélio Nery

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Baseado em Pinóquio


Virar um menino de verdade foi só o começo do meu sofrimento, por mais que todos na cidade chamem esse evento da minha vida de "final feliz".

Para o meu pai, era pura realização; para mim, era dor.

Agora eu era de carne e osso, mas, sempre que mentia, por menor que fosse a lorota, um osso meu rachava ou se quebrava; dependia do quão grave a mentira era.

Certa noite, logo no início da minha nova vida, meu pai e eu invocamos a Fada Azul, fazendo uma prece à primeira estrela que vimos no céu noturno. Gentilmente, a bela dama nos explicou que toda magia tinha um preço, e para mim seria sempre aquele: um lembrete eterno de que eu viera da madeira.

Sinceramente, eu gostava mais de quando o meu nariz apenas crescia.

Acabei não tendo uma infância tão divertida. Parte de ser criança é o faz de conta, mas eu não podia mentir nem brincando. Não podia inventar com os meus amigos que éramos guerreiros lutando com espadas, pois, se eu gritasse, com um punho erguido vazio, "não se aproxime, pilantra! Minha espada está pronta para derramar seu sangue!", era provável que meu punho estalasse e amolecesse, me causando uma dor excruciante.

E foi assim que passei os anos seguintes: sempre dizendo a verdade, sempre me privando de algumas felicidades essenciais provocadas pela mentira, de modo a me privar da dor.

Bom, ali estava eu com dezesseis anos. O famoso Pinóquio. O eterno Menino de Verdade, prestes a me tornar um homem de verdade.

Só que, na verdade, eu achava que já agia como adulto havia muitos anos.

*

Certa manhã, eu estava fazendo compras no mercado do centro da cidade. Era cedo, e o sino do fim da missa matinal ecoava entre as tendas erguidas sob o mormaço daquele domingo.

As muitas sacolas que eu já carregava pesavam. Meu pai não tinha problemas com dinheiro, vendia muito bem suas invenções de madeira. Não foi sempre assim, no entanto. Nos meus primeiros anos como Menino de Verdade, passamos por maus bocados para nos sustentar, pois os comerciantes não se interessavam pelos brinquedos de madeira do velho Gepeto. Mas, de repente, tudo mudou, e o dinheiro começou a entrar lá em casa de maneira tão rápida que meu pai me comprou o melhor conjunto de livros para que eu pudesse estudar.

Eu nem sempre conseguia me concentrar nos meus estudos, pois o barulho vindo da nova oficina subterrânea que meu pai construiu era inquietante. Sem falar dos homens que chegavam com envelopes vermelhos contendo suas listas de pedidos, tocando a campainha quando eu estava no meio do entendimento de um conteúdo importante.

Talvez por isso as minhas notas fossem ruins, mas não tão ruins quanto as de Espu...

Ah, olha ele ali.

Parei de andar, meus olhos fixos em um dos poucos garotos com quem tinha alguma relação na escola: Espuleta. Ele era uma série mais avançado do que eu, embora já a estivesse repetindo pela terceira vez, segundo os rumores.

Espuleta era um velho conhecido. Havíamos sofrido bastante na Ilha dos Prazeres, quando éramos crianças; na época eu ainda não passava de um fantoche de madeira. Ele não havia sido a melhor das influências, e continuava a não ser. Ainda fumava demais e bebia, apesar de só ter dezoito anos. Mas era um garoto legal, tirando seu defeito de viver se estragando. Não implicava comigo como a maioria dos garotos da escola e até me defendeu uma vez. Tentei me aproximar dele após esse episódio específico, mas não tive tanta retribuição quanto esperava.

Ele fazia o mesmo sempre que me via: sustentava meu olhar por alguns segundos, desviando a atenção em seguida; como fizera havia pouco. Estava com as mãos e os braços brancos de farinha. Naquele instante, parecia até um fantasma.

Era uma vez um final distópico - contosWhere stories live. Discover now