A caminho da floresta - Karem Folgado

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Baseado em João e Maria


Até 50 anos atrás, acompanhar o crescimento da barriga de uma mulher era sinônimo de cachaça e dança todos os meses. Não importava o que a criança seria no futuro: o presente era uma glória. Mas não demorou muito para os moradores daquela vila entenderem que a vida precisa de menos de um segundo para mudar seu curso. Uma escolha deveria ser feita, e a melhor opção foi óbvia desde o início. Afinal, eles já sabiam para quem seria mais fácil construir barricadas e segurar armas, não é mesmo?

Um protocolo simples foi instaurado: tirar o bebê, abrir as pernas, levar as meninas. Parteira, pai, soldado. Mas, se tem uma coisa que chama a outra, é problema, e o próximo passo ficou em suspenso. O que fariam com aquelas meninas?

A solução também veio rápido. E foi assim que as mães se juntaram ao choro das recém-nascidas em meio aos troncos da floresta. Agora, o pouco que sobrava dos pães tinha um novo destinatário além dos cachorros: alimentar e esperar, até ver qual ficaria mais bonita para retornar à vila. As outras, não tinha problema. Qualquer coisa que estivesse para além do que os olhos podiam distinguir entre as árvores se encarregaria.

Mas quem diria que em meio ao roncar das barrigas e o empalidecer dos rostos, surgiria um amor capaz de superar a fome? Quando Vigário viu suas filhas retiradas do ventre da mulher, já sabia o que tinha de fazer. Não foi fácil enganar o inspetor, tampouco os olhares minuciosos da velha parteira. Porém, foi graças à perspicácia de Vigário que Maria passou a ser João, e Antônia se chamou José.

José e João, Antônia e Maria. Seria fácil manter a mentira até as curvas dos quadris e as vozes finas demais serem perceptíveis. Ou pelo menos foi isso que Vigário pensou, antes de ter uma corda enrolada no pescoço. Não teve outro fim para elas: floresta e pão. Ponto final.

Porém, a vida tem seus momentos de justiça e além dos olhos negros, as meninas herdaram também a inteligência.

— Vamos juntar os pães para fazer o caminho da volta — opinou Maria, seguida do assentir vigoroso de Antônia.

Depois de minutos de pulo sobre raízes e procura de pães, as meninas descobriram que não eram tão espertas quanto os passarinhos, e foi o breu da floresta que lhes restou. As outras poderiam ter morrido de fome, certamente. Mas, então, onde estavam os corpos?

Maria segurava o estômago, cravando as unhas no tecido puído, como se a fome fosse saltar dali a qualquer minuto. Antônia já encarava nas pedras potenciais alimentos. Tinham ferro, não? Serviriam de algo. Pra quem não tinha nada, o pouco já bastava.

Não precisaram rezar por muito tempo. No meio de dois salgueiros tortos, uma casa surgiu quase como uma miragem na floresta. Maria segurou o punho de Antônia e a impediu de agarrar os pirulitos e as balas sobre o cercadinho. Sobre cada estaca de madeira, mesmo na escuridão, as cores infinitas dos pirulitos brilhavam. As madeiras vermelhas prenderam os olhos de Antônia, as telhas de marshmallow pareciam ter sido pintadas ali. Maria encostou os dedos na superfície porosa, e não sabia se queria descobrir a origem de todo aquele açúcar.

Foi automático aproximar o nariz e deixar o odor ferroso penetrar nas narinas, exalando o sabor do alimento que não sentiam há muito tempo. Ela não quis saber quem morava naquela casa, e a origem das guloseimas perdeu a importância quando sua língua passeou pelo pirulito. Antônia tinha as bochechas sujas de um vermelho intenso, vivo. Foi na terceira mordida que Maria percebeu o barulho que ecoava pela floresta.

Venham, venham, criancinhas. Aqui tem doce de montão. Tem fome, tem sede? Entra no casarão.

A voz era tão melosa quanto o doce que Maria tinha na boca, as mãos manchadas por aquele vermelho que impregnava todas as superfícies da casa. Começou baixa, somente um sussurro, até Maria sentir a vibração nos ouvidos. Vamos. Entre. E como não foi só o gato que morreu de curioso, Antônia e Maria atravessaram o jardim de pirulitos e marshmallows. As dobradiças da porta rangeram quando as meninas alcançaram o primeiro degrau da escada, mas lá dentro não se via nada. Maria encarou os olhos escuros da irmã. Em um segundo, via o nariz afilado, igual ao seu; no outro, a escuridão tomou conta de tudo.

Maria não sabia distinguir se era dia ou noite. As roupas largas demais finalmente tinham servido para algo — lá dentro estava uma Sibéria. Poderia apostar que um urso polar viveria tranquilamente na casa. E o motivo? Bem... Esse não deixava Maria tirar os olhos das prateleiras. Os olhos continuaram a encarando do alto da prateleira. Pareciam vidro fosco emoldurado pela pele desgarrada, o queixo caído e os vermes que saiam de todos os orifícios dançando pela cabeça. Maria não conseguia respirar, muito menos se atrevia a gritar. Quem a escutaria daquela parte da floresta? E, se o fizessem, iriam até lá? Maria estudava o couro pálido da cabeça, se perguntando a cada mexida no caldeirão... Onde estavam os cabelos?

A menina foi poupada de aprofundar suas teorias quando a madeira rangeu do outro lado da casa. Talvez não só os ursos se dariam bem ali — um vampiro não acharia nada mau todo aquele breu. Maria se revezava entre mexer na panela e imaginar o que estava escondido. Às vezes, temos mais medo do que não conhecemos.

Mova, mova, minha querida. Mova essa panela. Vamos, continue. Mova ela.

Além do redemoinho que tomava seu estômago, um lamento baixinho não deixou Maria se esquecer da irmã. Ela chegou a se perguntar se Antônia realmente estava chorando, ou se era apenas mais um fruto de sua imaginação. Porém, o grito que percorreu sua espinha tirou toda dúvida que restava.

Maria virou no banquinho, a cantoria cessou. A única coisa audível era a voz estrangulada da irmã. Maria se lançou no escuro, pronta para combater qualquer monstro que criara em sua mente. Ela estendeu os braços e segurou ombros finos, puxando para si... alguém igual a ela. O coração da menina parou, ao mesmo tempo que sua bunda bateu no chão. Na cela, Antônia continuava a gritar por qualquer coisa que estivessem fazendo com ela. Maria não ficou surpresa ao ver mais crianças aparecerem, com as mãos metidas entre as grades, os braços convertidos em ossos que poderiam até passar por qualquer fresta. Dessa vez, Maria gritou. E esse foi seu erro.

Talvez, ela pudesse escapar. Talvez, e somente talvez, corresse mais rápido que aquelas criaturas metade ossos e metade gente. Maria se viu como foco de olhos foscos e peles penduradas, todas se aproximando a cada estalar do piso. A menina encarou a fresta de luz sob a porta. Só tinha uma chance, e não ia a desperdiçar. Seu coração doeu quando saiu do chão e correu pela casa, sabendo que a irmã não tivera tanta sorte.

Seus pulmões queimavam e o peito não conseguia mais acompanhar os passos rápidos. Mas foi rápido demais, Maria. Quando ela caiu, sentiu a primeira mordida. A panturrilha parecia ter sido arrancada, mordida, triturada, mas Maria não desistiu. É do coração das crianças ter esperança. Quis se levantar, até tentou, porém seus braços não a obedeceram. Ela se virou para encarar o que a impedia de prosseguir, e viu o nariz afilado... Aquelas criaturas, elas tinham sido iguais a Maria. Poderiam ter tido uma chance de ver o sol brilhar sobre as telhas da cidade. De construir seus sonhos e quiçá as malditas barricadas!

Mas, quando o inverno chegou à vila e mais uma menina fez seu caminho em direção à floresta, ela não reconheceu Maria.

Era uma vez um final distópico - contosTempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang