QUATRO - Parte 3

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Eu devia ter ligado para a mãe de Evandro antes de fazer qualquer acordo com ele. Pelo visto o preço que ele me passou é bem acima do que Nina costuma pagar para ele. Se bem que, considerando o estado em que a casa está, Evandro vai merecer cada centavo. E, se ele continuar na animação que estava hoje, eu vou ficar bem tentada a roubar ele da mãe.

Encaro as costas do rapaz enquanto ele sobe a rua na direção do centro da cidade. Bom, pelo menos um problema a menos. Ou dois, já que depois de tirar a crosta de sujeira deu para ver que não preciso trocar o piso da área de entretenimento. Pelo menos, não agora.

Respiro fundo e olho ao redor. A rua está deserta, como sempre. Não. Tem um carro parado não muito para a frente. O carro da empresa de telefonia. Quando foi que ele chegou aqui? Porque tenho certeza de que ele não estava parado ali quando saí com Evandro.

— Matias?

A porta do carro se abre e Matias sai, balançando a cabeça.

— Desculpa aparecer assim. É que vi você na porta conversando com o filho da Nina e resolvi esperar terminarem o assunto, mas acho que me distraí demais no celular.

O que até seria bem normal, não fosse o fato de ele ter "resolvido esperar".

— Tem algum problema com a minha linha?

Que, aliás, eu nem usei ainda. Bem que poderia ter ligado para Rafaela do fixo. Teria saído mais barato, mas estou tão acostumada a só usar o celular...

Matias se encosta no carro.

— Não, nada disso. É só que você não é daqui, certo?

Levanto as sobrancelhas. Acho que já cansei dessa história.

Ele ri e balança a cabeça.

— Os forasteiros têm que se juntar, não acha? Você não faz ideia da dificuldade que foi conseguir um emprego aqui.

Hmm. Não esperava por isso.

— Então você também não é daqui?

— Interior de São Paulo. Moro aqui faz quatro anos, mas mesmo assim ainda agem como se eu fosse uma criatura estranha.

Acho que essa foi a melhor descrição que já vi de como me trataram.

Cruzo os braços e me encosto no portão.

— O que eu não entendo é como essa cidade sobrevive de turismo sendo que trata pessoas de fora assim — comento.

— Ah, eles não têm problema com pessoal de fora vindo aqui para passar um tempo. O problema é quando as pessoas de fora resolvem morar aqui.

Faz sentido. Por mais que eu não entenda eles serem tão territoriais, o que Matias falou faz um certo sentido. Se é que alguma coisa aqui faz sentido.

— Você vai reabrir a hospedaria, não é? — Ele pergunta.

Levanto as sobrancelhas. Não, vou ficar morando sozinha nessa casa desse tamanho. Sou espaçosa desse jeito.

— Vou.

— Já cuidou da papelada? Porque se não tiver alguém olhando isso para você, a advogada lá do trabalho é minha amiga e provavelmente pode ao menos dar uma olhada nas coisas.

Droga. Droga, eu esqueci completamente do lado burocrático das coisas. Fiquei tão preocupada com deixar a casa habitável de novo que nem me lembrei que ia ter que abrir a empresa e tudo mais que eu não faço ideia de como fazer.

Matias ri.

— É, acho que não.

Balanço a cabeça.

— Fiquei tão preocupada em arrumar a casa que nem lembrei disso. Se puder falar com ela...

Ele assente.

— Falo com ela assim que tiver um tempo livre no trabalho, então. E depois posso te ligar para combinar, ou passar o contato dela? Mais fácil que vir aqui.

Rio e balanço a cabeça.

— Qualquer coisa é mais fácil que vir aqui. — Pelo menos até eu arrumar ao menos uma campainha. — Pode me ligar, sim.

Ele se afasta do carro.

— Ótimo. Bom, vou indo então porque tenho certeza de que você ainda tem muita coisa para fazer.

— Obrigada.

Matias inclina a cabeça e entra no carro.

— Boa noite.

Não tenho tempo nem de responder, porque ele já está ligando o carro e acelerando.

Fico olhando o carro se afastar. Mais uma coisa para a minha lista de preocupações: a burocracia de abrir uma hospedaria. Como é que não pensei nisso antes? Deveria ter sido a primeira coisa na minha cabeça. Mas, pelo menos, acho que essa vai ser uma das coisas fáceis de se resolver. Parece que finalmente alguma coisa está começando a dar certo para mim.

Passo para o lado de dentro da propriedade e fecho o portão antes de passar a corrente com o cadeado. Já são pouco mais de seis horas, não tem a menor chance de alguém vir aqui agora. Posso voltar para a cozinha e começar a pensar em como vou me organizar com relação a comida, pelo menos.

Mas... Olho para a casa. Tenho quase certeza de que vi uma silhueta passando por uma das janelas do terceiro andar. Cruzo os braços com força quando um arrepio me atravessa. Não estava frio assim.

E não vou nem pensar na história toda de casa assombrada de novo, porque quem vai ter que dormir aqui sou eu.


Sombra e Luar (Entre os Véus 1) - DEGUSTAÇÃOWhere stories live. Discover now