Capítulo 2 - Lifa da rua

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Belman abriu os olhos antes que primeiro sino badalasse, como de costume. A luz iluminava e ardia nas suas pernas por baixo do lençol, vinda da janela na parede oposta que era virada para o mar e o sol nascente, causando o desconforto diário que ele sempre torcia por não notar. Mas não foi o caso daquele dia, o sol havia mesmo lhe acordado e uma preguiça intensa o contagiou.

O cheiro salgado também adentrara seu quarto quando o vento abriu uma fresta na janela, fazendo-a bater levemente e irritantemente, e voltar a dormir seria difícil. Mas ficou feliz ao se lembrar que era seu dia de folga. Apesar do privilégio, ele ainda gostava de comparecer na Tantom's e encontrar os amigos. Lá eles bebiam, riam e cantavam, ainda mais que o de costume.

Observou o teto por bons minutos, calculando o momento em que ganharia coragem de se levantar. Lembrou-se da noite passada nesse meio tempo, sobre a figura que viu no lixão. Ainda se sentia intrigado, provavelmente era mesmo uma pessoa, que sentia fome e vasculhava o lixão na esperança de encontrar algum resto, e chegara ao lamentável ponto de se portar feito um animal faminto. Belman sentiu pena, e decidiu voltar lá no dia em questão para conferir as louças que deixara no chão.

Como que quase se jogando, ele o fez, e então espreguiçou-se no centro do cômodo, respirando fundo e fitando o horizonte através da janela, que já começara a se manchar com as ondas de calor que subiam pela maré.

O quarto ao redor era simples, tinha uma cama, uma cômoda, uma escrivaninha e um baú, além de uma boa vista para o Mar Quente. Apesar disso, era o que ele mais clamava todos os dias quando batia o cansaço, e dificilmente se sentiria tão aconchegado em qualquer outro lugar.

Arrumou a cama e amarrou os cabelos castanhos da nuca, deixando algumas mexas rebeldes na frente sem querer. Vestiu-se com um dos poucos conjuntos que tinha: uma camisa branca com um colete azulado por cima, um cinto com uma algibeira, uma calça bege e um par de botas. E então saiu pela porta, mascando uma hortelã para espantar a podridão que estava o seu hálito.

Aquilo que ele chamava de quarto residia no segundo andar da residência de uma senhora, Nadira era seu nome. Não falava muito com ele, a não ser quando ia lhe cobrar o aluguel ou trocar um "bom dia" sem entusiasmo. Belman suspeitava que algum histórico de sua vida a havia deixado ranzinza e monossilábica, apesar disso, ele não se importava em manter uma relação silenciosa, uma vez que só utilizava o quarto para dormir na maioria das vezes, e ainda por cima, exausto. Desceu as escadas até a sala de estar, que ficava entre a porta da frente e os aposentos da proprietária, os quais Belman nunca fez questão de botar os pés. O cômodo de tons bege estava vazio, portanto, suspeitou que Nadira pudesse estar dormindo, então se apressou para se atirar nas ruas antes que a dona tivesse a chance de lhe encher até as bordas do saco. Abriu a porta e a umidade quente atingiu suas narinas.

Uma vez do outro lado, dali onde estava, seria só seguir reto para a direita por alguns minutos, e então estaria na Tantom's.

Refez mais uma vez o caminho que mais percorrera em toda a sua vida, com o mesmo cenário portuário de sempre. Gritos e ordens proliferavam no cais, apinhado de trabalhadores, vendedores e velas coloridas. Atravessou a ponte do canal do centro, e prosseguiu o caminho.

Estava bem cedo quando chegou, a ponto de a taberna nem ter se aberto ainda. Mas o que o interessava não era ela no momento, e sim o prato que havia deixado na noite passada.

Virou a esquina do estabelecimento e abriu o cercado do lixão. Haviam os mesmos sacos, pacotes e detritos da noite anterior. E lá no chão, como algo consumido por alguém com um pingo de civilidade, estavam as louças que deixou. Não poderia ter sido um animal, pois apesar do prato lambido, a caneca de madeira manteve-se em pé e sem uma gota, e além disso, a única folha de alface que ele havia deixado ainda estava lá com a marca de uma mordida humana.

A Caveira de LuzWhere stories live. Discover now