uma chuva aconchegante

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Na maior parte do tempo, Jungkook gostava de morar numa pequena cidade do interior. Era bom viver num lugar sossegado, silencioso, meio monótono, sem afetações ou muita coisa arrebatadora. Podia até não parecer, mas ele estava longe de ser uma pessoa caótica. Apesar de bagunceiro, era super preguiçoso, molenga e lento. Por isso, qualquer tipo de agitação ou mudança brusca em sua rotina se tornava um aborrecimento — mas, de modo algum, um grande aborrecimento. Na verdade, era quase impossível tirá-lo do sério, e as suas raras chateações podiam ser facilmente contornadas. Jungkook era sempre tão tranquilo e inabalável que às vezes Jimin se irritava com a sua falta de irritação.

E, naquela noite de sábado, ele estava em paz como de costume. Sentado de frente para o seu computador, mantinha os olhos fixos a um jogo na tela. Personagens coloridos e sons explosivos reverberavam em seus fones ao passo que, no mundo real, para além de sua janela, ecoava o chiado de uma forte chuva. Para Jungkook, não havia coisa melhor do que passar a noite em seu quarto enquanto uma chuva aconchegante caía lá fora.

Ele tinha acabado de jantar, e aquela era a primeira vez no dia em que achara tempo para si mesmo. Em praticamente todos os sábados ele e seus pais recebiam a visita de sua tia, e é claro que ela trazia consigo os seus quatro filhos barulhentos. Por mais que Jungkook amasse todos eles, ficava exausto de passar o dia dando atenção para aqueles baderneiros. Para acalmá-los, era obrigado a participar de suas brincadeiras, coisa que lhe tirava muita, muita energia mesmo.

Mas agora que estava finalmente à sós e de barriga cheia, pretendia passar a noite com os seus videogames. Tamanha era a sua imersão naquela sequência de partidas que mal via o tempo passar e o clima piorar. Quanto mais a noite escurecia, mais a chuva engrossava e se transformava em tempestade. De vez em quando, relâmpagos brilhavam rapidamente por detrás das venezianas de sua janela, que, feitas de madeira, chacoalhavam com a ventania. Era uma coisa um tanto quanto assustadora, mas Jungkook estava tão distraído com o seu jogo que sequer reparava. Porém, num dado momento, ele foi obrigado a reparar.

Um clarão maior que os outros irrompeu por entre as frestas da janela. Subitamente, tudo ficou escuro. As luzes do quarto se apagaram e o computador desligou como se pifasse. No segundo seguinte, um trovão estrondoso cortou o alto chiar da chuva. A energia caiu, e Jungkook, sozinho num breu total, suspirou desconsolado.

Se tinha uma coisa de que ele não gostava no fato de viver numa pequena cidade do interior era justamente isto: a sensibilidade da energia elétrica e como a cada chuva era muito provável que ela seria cortada.

Chateado por ter os seus planos de jogatina arruinados, Jungkook esticou a mão por sobre a escrivaninha em busca de seu celular. Assim que o encontrou, ligou a lanterna e levantou-se para sair do quarto. Quando chegou à sala de estar, deu de cara com sua mãe, que andava para lá e para cá enquanto acendia velas para iluminar a casa. Acostumada com aquele tipo de situação, estendeu um castiçal ao filho tranquilamente, sem nada dizer. O pai de Jungkook, por sua vez, entrava em contato com a distribuidora de energia da cidade. Ele ficou sabendo que teriam de esperar ao menos uma hora até que uma equipe viesse ao bairro para resolver o problema. Ao receber essa informação, Jungkook desligou a lanterna do celular e, com o castiçal em mãos, voltou para o quarto.

Depois de colocar a vela no móvel de sua cabeceira, jogou-se no colchão e suspirou mais uma vez. Por sorte o seu celular ainda tinha bateria, já que ele passara o dia sem praticamente tocá-lo. Seu primeiro impulso foi abrir o aplicativo de mensagens em busca da conversa com Jimin. Perguntou ao amigo se a energia também tinha caído em sua casa, mas a mensagem, apesar de enviada, não foi recebida. Jimin também devia estar sem luz e, como os seus dados móveis costumavam ser péssimos, era bem provável que não tinha como respondê-lo.

Precipitadamente tranquilo porque ao menos os seus dados funcionavam, Jungkook clicou num aplicativo de streaming para assistir a alguma coisa. Depois de longos segundos esperando a página inicial carregar, percebeu que isso não funcionaria. Ainda esperançoso com a sua internet móvel, tentou utilizar um aplicativo de vídeos, outro de webcomics, outro de um jogo online, mas nada rodou. Tentou baixar um jogo que funcionava sem internet, mas o download nem ao menos começou. Pela terceira vez naquela noite, soltou um suspiro.

Largou o celular sobre o peito e ficou contemplando o teto do quarto, a tinta branca parcamente iluminada pela luz amarelada da vela. Não sabia o que fazer. Embora o seu corpo estivesse cansado, ainda não estava com sono. Olhou para a prateleira que sustentava a sua coleção de quadrinhos, mas descartou a possibilidade de ler à luz de vela — não estava a fim de ficar com dor de cabeça por forçar a visão. Levantou as mãos no ar e ficou fazendo desenhos com as formas de suas sombras, mas logo se cansou e largou-as no colchão.

Então lembrou-se de que o único aplicativo que funcionara em seu celular fora o aplicativo de mensagens. Abriu-o de novo, mas não para falar com Jimin. Ele não conversava com muitas pessoas, mas ainda assim decidiu checar as suas conversas. Rolou um pouco por elas, clicou em algumas, saiu, até que se deparou com uma sequência de que tinha se esquecido, mas que de repente lhe chamou muita atenção: os grupos do RPG do Harry Potter.

Abriu um deles, o da biblioteca de Hogwarts. Viu que as últimas mensagens por ali tinham sido enviadas no dia anterior: representavam uma interação entre Harold Johnson e Thomas Keating. Naquela hora da noite, todos os grupos estavam quietos, mas, mesmo assim, Jungkook leu aquela sequência de mensagens como se fossem recém enviadas. Harold e Thomas — ou melhor: Hoseok e Taehyung — discorriam sobre a festa de aniversário da morte de Nick Quase-Sem-Cabeça, um dos fantasmas de Hogwarts.

Jungkook ficou alguns minutos imerso naquela história maluca. A maior parte dela tinha sido escrita por Taehyung. Havia dezenas de fantasmas num ponto oculto do castelo, um banquete com comida apodrecida e uma batalha entre um poltergeist bêbado e um tal de Pirraça, um fantasma que causou uma baita bagunça em Hogwarts, uma confusão cuja solução sobrou para Harold e Thomas. Os meninos buscavam um livro na seção reservada da biblioteca para lidar com aquele problema. Assim que terminou de ler a última mensagem da narrativa, Jungkook sentiu-se frustrado.

As imagens do castelo, da aura fria e sombria dos fantasmas, da confusão da festa e dos livros antigos da biblioteca se formaram com tanta vivacidade em sua cabeça, tão claras e delineadas, que mal pareciam imaginadas — passaram em frente aos seus olhos como se fossem as cenas de um filme. Jungkook teve de admitir para si mesmo, sem qualquer orgulho ou teimosia, que gostava bastante da forma com que Kim Taehyung escrevia; que aquela história tinha sido legal, engraçada e interessante; que queira mesmo ler mais do que ele tinha a dizer.

Ao pensar sobre isso, sentiu uma coceirinha esquisita em algum lugar de seu peito. Um pouco a contragosto, constatou o tamanho do incômodo que deveria causar para aquele garoto. Ele não o conhecia, não de verdade; só sabia o suficiente para irritá-lo com suas brincadeiras bobocas, e, por um momento, até que se identificou com o Pirraça, o fantasma irritante que arruinara a festa. Depois de fazer essa aproximação, sentiu-se meio culpado. Ao mesmo tempo em que rolava sobre seu colchão, rolou com os dedos pela tela de seu celular, pensativo.

Jungkook só participava do RPG quando Jimin estava online ou quando Taehyung estivesse falando alguma coisa, mas, por um instante, perguntou-se como seria se simplesmente escrevesse um turno como aqueles que todos os participantes escreviam — afinal, o RPG também era uma espécie de jogo. Essa cogitação, porém, embora inesperada e altruísta, durou pouco menos que um momento. Jungkook sabia que era incapaz de fazer uma coisa dessas, mas, ainda assim, ficou encarando a tela daquele grupo, a barra que piscava a espera de uma mensagem a ser escrita.

Ok, talvez ele fosse incapaz de escrever um turno narrativo, mas até que sabia conversar, mesmo que tortamente — e, por alguma razão, estava com vontade de conversar com aquelas pessoas que sabiam escrever histórias e aventuras. E se mandasse um "alô" naquele chat? Será que alguém responderia? Será que Kim Taehyung estaria por ali? Ele estava curioso, não sabia mais o que fazer, já começava a bocejar de tédio e não tinha um pingo de vergonha na cara.

Pensou, sem ponderar as consequências de suas atitudes, que uma mensagenzinha não faria mal a ninguém.

harry potter [taekook]Where stories live. Discover now