Capítulo I

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Lisboa, 1685.

Diogo saltou entre um prédio e outro. Cerca de quatro metros separavam as construções e um beco repleto de lixo mal cheiroso ficava entre elas. Sem importar-se, o homem de barba malfeita e desgrenhada, rolou pelo topo da construção ao aterrissar e perdeu equilíbrio quando algumas telhas de barro se soltaram. Tateando com as duas mãos, buscando agarrar-se em algum ponto para evitar a queda, mal se incomodou quando farpas soltas forçavam caminho por sua pele grossa.

Quando finalmente agarrou um ponto de apoio, utilizando três dedos para sustentar todo o peso do corpo de mais de setenta quilos, balançava dependurado sobre o parapeito da torre de pedra que não apresentava nenhum traço que a distinguisse das dezenas de outras que existiam na movimentada metrópole portuguesa.

Alguns pombos encaravam-no empoleirados e de olhar vago, e por um momento, as criaturas pareciam enxergar além do sentido da visão. Em silêncio sujavam toda a beirada da construção com suas fezes, tornando a superfície escorregadia.

- Malditos ratos de asas. – disse Diogo com uma careta.

Sua mão deslizava e a janela imediatamente à sua frente estava fechada, mas não somente, estava trancada.

- Só um pouco de sorte, só dessa vez. – Diogo falava para si mesmo enquanto forçava a janela com sua mão livre.

Recitando palavras em babilônico, aprendidas décadas atrás em suas andanças pelo norte da África, imbuídas com a fé necessária para dobrar a realidade, as dobradiças cederam e uma das janelas se abriu com um rangido irritante, mas que trazia uma pontada de alívio.

Diogo projetou o corpo para dentro do aposento mal iluminado e caiu por cima de caixas empoeiradas e quebradiças, partindo alguns vasos e outras quinquilharias armazenadas no local. Após levantar-se, bateu a poeira do corpo e das roupas.

- Chegou tarde, Cão. – disse a voz sibilante na escuridão.

A luz do sol começava a se espalhar pela janela aberta e iluminava cantos obscuros, revelando que o depósito abrigava além de vasos e telas finamente pintadas, objetos de artes sacras variados. Diogo correu os olhos por toda a cena, a voz que se ocultava no que restava de sombras trazia um homem em seus braços, mesmo sem focar nisso, ele percebeu as batidas do coração do homem trazido pela criatura sibilante.

- Esse homem caído em seus braços é o ladrão de artes sacras, porcelana, quadros e muito mais? – perguntou Diogo apontando o dedo indicador em direção ao homem desacordado. – Bem, ele estava na minha lista faz tempos. Mas devo dizer, ele possuía algo que eu estava buscando e não gostaria de sair daqui sem isso.

Com uma cuspida grossa e pegajosa a criatura mostrou todo o desdém pela fala de Diogo. Arremessou o homem que trazia em suas garras contra caixas ainda intactas, produzindo som de rachaduras na porcelana. Esticou a coluna e mostrou seu verdadeiro tamanho, ou talvez apenas querendo se mostrar maior do que realmente o era, como fazem muitos animais quando eriçam sua pelagem, o monstro apresentava mais de dois metros. Os caninos metálicos se expandiam deixando ferimentos na carne deformada e cinzenta da aberração de dois metros de altura. Vermes percorriam toda a extensão da massa putrefata e ossos expostos davam um aspecto mais aterrador ao monstruoso oponente.

- Sua arrogância é sabida entre os meus. – disse o monstro lambendo o próprio rosto com uma das suas quatro línguas. – Acaba aqui, devo dizer.

A criatura de dentes metálicos trazia em uma de suas mãos uma espada longa e serrilhada, entalhada com os mais diversos dizeres em latim. Os olhos de Diogo foram em direção ao objeto e, após um longo e sonoro suspiro, balançou sua cabeça em negação e sacou sua própria lâmina da bainha. O monstro avançou com a mão livre tentando alcançar o pescoço de Diogo, que se desvencilhou com um movimento de cotovelos, jogando a garra do oponente em direção ao chão. Com a mão livre agarrou a lâmina que a criatura trazia consigo, torcendo para estar certo e para não ser ferido pela arma. A pele nua de sua mão deslizou pelo fio sem sofrer nenhum arranhão.

Aproveitando o momento de surpresa, não transparecendo que estava tão impressionado quanto o inimigo por tal manobra haver funcionado, puxou a lâmina para si e com um rápido movimento a substituiu pela arma que vinha utilizando.

- Obayfo, hoje é o dia da punição por sua existência profana. – disse Diogo enquanto girava a espada com habilidade, sentindo o peso da mesma.

Existia uma diferença de velocidade entre os dois,  e Diogo, enquanto caçador experiente que era, sabia das suas limitações. Encurtou a distância de batalha e avançou com a lâmina recém-adquirida contra as pernas do adversário. O corte entrou fundo na carne do monstro de dentes metálicos que urrou de dor e cambaleou dois passos para trás. Como reflexo pela dor o Obayfo, como Diogo o chamara, desferiu um safanão violento contra o humano que o atingira. Nesse momento a diferença entre os dois ficava ainda mais evidente.

Diogo sorriu ao perceber, sem ter tempo de reagir, o golpe que viera em sua direção. Arremessado contra a janela, ele a destruiu por inteiro com o corpo e os raios dourados do dia invadiram o salão em que ambos se encontravam.

Depois de cair de três andares e se estatelar contra uma venda de frutas e verduras, esmagando tomates que amorteceram sua queda, conferiu a espada que fora buscar e relaxou ao perceber que ela ainda estava em suas mãos.

Um grupo de pessoas começava a se juntar no local, curiosos sobre aquela cena, assustados, alguns até mesmo manifestavam preocupação. Diogo tateou suas costelas, o lado direito era o mais dolorido e talvez alguns ossos estivessem partidos.

Antes que a multidão crescesse em número Diogo pôs-se de pé e foi afastando as pessoas do caminho. Seguiu em passos largos em direção ao cais, pressionava as costelas com o braço esquerdo, porém conforme caminhava sentia as pontadas agudas se tornando mais espaçadas e a dor diminuindo mais rápido do que suas passadas venciam a distância entre a feira e o seu abrigo.

Fácil demais, pensava consigo mesmo.

Diogo CãoWhere stories live. Discover now