Capítulo VII

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Uma das noites trouxe em seu bojo os ventos de ameaçadora tempestade, ventos estes que agitavam a placidez do mar, tornando-o revolto e bravio. As velas agitavam freneticamente e Diogo notou a inexperiência daquela tripulação ao reparar que os homens que deveriam ajudar ao capitão nas manobras para evitar que a Caravela perdesse seu rumo, corriam em variadas direções, sem tomar nenhuma decisão que fosse digna de lidar com o acontecia.

Os gritos do capitão ordenavam tarefas aos seus comandados e eram abafados pela confusão entre os homens e o ribombar dos trovões que estremeciam os céus. Ninguém se entendia na profusão de sons e a embarcação, outrora sólida no início da viagem, parecia pequena e frágil em meio às ondas e ventania selvagem. Diogo apressou-se em correr até o comandante, desviando de homens caídos pelo convés e não se detendo para ajudar aqueles que eram arremessados ao mar pela força dos ventos e pelo balançar frenético da caravela.

—Você precisa aliviar a pressão nas cordas ou o mastro central vai ceder! – gritou Diogo para o comandante. Os sentidos ampliados permitiam que ele enxergasse mesmo à noite com grande precisão. A tempestade tomava o horizonte, com sorte a embarcação sairia inteira.

—E você quem é? – gritou de volta o capitão, enquanto agarrava-se a um dos mastros menores.

—Diogo Cão. – respondeu ele com a feição mais séria que conseguia apresentar, mas que sempre terminava com uma careta.

Por um momento o capitão o encarou, buscando em suas memórias explicações para o que acabara de ouvir. Seria mesmo aquele homem o lendário comandante de séculos atrás?

— Ande homem, ordene aos seus comandados! – gritou Diogo ao mesmo tempo que analisava a situação rapidamente. Não precisava de muito para entender o que precisava ser feito. Estivera em problemas parecidos um sem número de vezes.

O capitão proferiu a ordem para cortar algumas das cordas e seu comando foi repetido pelo contramestre, chegando até os homens responsáveis pela tarefa. Diogo correu até o timoneiro e o instruiu sobre a posição que deveria manter a caravela, segurando ele próprio o timão.

Os homens gritavam caídos ao mar e conforme as ondas aumentavam em intensidade, abafavam os pedidos de ajuda. Seguindo os comandos de Diogo, a caravela se mantinha estável e atravessava a tempestade que obscurecia ainda mais os céus noturnos na imensidão do Oceano Atlântico. O caos, contudo, permanecia na embarcação, onde muitos homens buscavam lançar os botes ao mar na esperança de sobreviver ao vindouro naufrágio. Mesmo com a firmeza do leme nas mãos de Diogo, era impossível desfazer o desespero no coração daqueles que encaram a morte de frente.

Na manhã seguinte, com os primeiros raios de sol e o fim da tempestade que se arrastou por toda a madrugada, era a hora de checar os destroços e calcular as perdas. Diogo havia deixado o convés e buscado refúgio nos porões, onde ouviu o desespero dos cozinheiros que reclamavam acerca dos tonéis de água perdidos na noite anterior.

Diogo evitara o capitão pelos dias seguintes, assistindo de longe a execução de diversos homens para que as rações e biscoitos durassem até a chegada no Brasil. Aqueles homens eram condenados pela coroa e viajavam ao novo mundo em busca de uma nova oportunidade. Suas vidas, no entanto, estavam nas mãos do capitão, que decidiu por bem levá-las ao fim. Diversos entre eles foram degolados nos dois dias seguintes à tempestade, reduzindo em muito a população da caravela.

Na noite imediatamente após as execuções, um grupo de demônios etéreos e fantasmagóricos se aproximaram da embarcação, vindos do mar. Trajavam mantos rasgados e portavam foices rústicas em suas mãos. Tinham os rostos vagamente humanos, mas os mesmos apresentavam cortes e feridas abertas e pustulentas. Diogo observava com atenção o ir e vir das entidades psicopompos arrastando aquelas almas diretamente para o Inferno. O movimento era plácido e tranquilo, um contraponto ao turbilhão de sons e desgraças que eram os campos flamejantes dos círculos infernais. Diogo conhecia bem tais entidades.

– O Inferno ainda arde dentro de você. – disse o mentor demoníaco, surgido das sombras. Seu corpo infantil apresentava o aspecto decomposto e profano, com a cabeça de bode empapada com o sangue seco totalmente transformada.

—Sim, as cicatrizes ainda queimam quando me aproximo dos psicopompos. – Respondeu ele e mesmo notando a transformação de seu mentor, evitara mencionar. – Pelo que me recordo, eles não foram tão gentis comigo.

—Não deixe suas lembranças confundirem quem você é, Cão. – disse o mentor com a voz gutural. – Tu és um soldado, meu soldado. Dores são para mortais, para nós.... Somente a eternidade interessa.

Diogo assentiu e continuou a observar os movimentos dos espíritos encarregados de transportar almas diretamente ao Inferno. Muitos homens haviam morrido ali, grande parte deles em meio ao desespero e após uma vida de obscenidades e violência, não havia outro destino para eles.

—Duzentos anos, mestre. – disse ele quebrando o silêncio que se instalara entre os dois por um instante. – Algum dia saberei qual a razão de o senhor ter escolhido a mim?

—Você já sabe, mas não aceita. Foi pela força da sua alma. – disse ele conforme desaparecia nas sombras. – O capitão está doente. Encontrarei uma utilidade para ele.

A voz de seu mestre ainda evanescia quando quatro homens aproximaram-se de Diogo. Todos eles tinham uma das mãos escondidas às costas e com a mão exposta acenavam pedindo calma. Eram embrutecidos por uma vida criminosa, com cicatrizes por todo o corpo e de feições endurecidas. Diogo recostou os cotovelos sobre a murada e relaxou sua postura, esperando que eles se aproximassem mais.

—O capitão mandou vocês? – perguntou Diogo com insolência, apontando os dedos para os homens.

—Devagar e você não precisa se machucar. – respondeu um dos homens.

—Você vai ter que explicar muita coisa para o capitão. – disse outro.

—Pois bem. – retrucou Diogo, abandonando a instância relaxada e levando à mão esquerda ao cabo de sua espada de lâmina curta. – Não gosto da atitude de vocês, vou te que ensinar um pouco de etiqueta.

O primeiro homem avançou, mas recebeu um chute em seu joelho, o que o fez despencar no chão, urrando de dor. Diogo agarrou o segundo homem pelo braço e o puxou em direção à lâmina, atravessando o estômago do adversário com facilidade. O sangue escorria pela arma quando o terceiro entre os homens emitiu um grito de surpresa.

Diogo girou o corpo em velocidade para atingi-lo, contudo, o homem sacou de dentro de sua camisa um crucifixo feito de prata e madeira e o apontou para Diogo, evocando o nome do Nazareno com o fervor de uma oração em desespero.

Se contorcendo ante o símbolo sagrado, Diogo se afastou da cena e correu em direção ao porão. Os passo acelerados e trôpegos eram devido à ardência em seus olhos e ao fato das cicatrizes queimarem como se estivessem sendo feitas naquele momento. Cambaleou através das escadas e se apoiava nas paredes para alcançar o abrigo que havia improvisado em meio aos tonéis, ratos e baratas.

— Maldição, maldita. – dizia Diogo para si mesmo quase em um murmúrio. – E eu salvei a vida destes imprestáveis. Nunca imaginaria que haveria um sensitivo entre eles.

Mestre, meu disfarce foi comprometido. Havia um sensitivo entre os homens do capitão e ele viu através da carne, enxergou minha verdadeira forma. O pior de tudo, foi capaz de me ferir com um símbolo sagrado.

Diogo mentalizava a figura de seu mestre e toda a mensagem que desejava passar. Riscara os símbolos de comunicação no chão utilizando sua lâmina e abastecera o ritual com a energia vital dos ratos que abundavam o porão. Tal método de comunicação já fora usado outras vezes, mas Diogo evitava utilizar magia, pois no fundo, não a compreendia muito bem.

O símbolo mágico riscado e banhando em sangue emitiu uma fraca luminescência e depois apagou-se. A mensagem havia sido entregue.

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⏰ Last updated: Oct 28, 2016 ⏰

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Diogo CãoWhere stories live. Discover now