Capítulo II

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A casa simples de pedra e telhado de madeira, com quase nenhuma decoração externa ou interna, era idêntica a dezenas de outras naquele bairro habitado por marinheiros, ferreiros e carpinteiros. O chão de terra batida levantava poeira em dias secos, o que costumava ser um problema para ferreiros que expunham suas mercadorias ou artistas de rua que trabalhavam próximos ao cais. Diogo entrou em sua casa e sem nenhuma cerimônia jogou a espada sobre uma mesa de carvalho produzindo uma batida seca do metal contra madeira.

- Você demorou, Cão. – disse a voz grave, oculta nas sombras. – Teve problemas?

Diogo cerrou os olhos para tentar enxergar o que seu visitante fazia no canto mal iluminado de sua sala. Nunca deixava de se incomodar com aqueles que se mesclavam à escuridão.

- Caí de uma torre de três andares, parti alguns ossos e fui surpreendido por um Asimani.

O interlocutor outrora oculto nas sombras caminhou em direção à janela, onde a luz se esgueirava através de frestas, e lançou uma toalha, levando o ambiente a uma penumbra similar ao fim da madrugada que se encontra com o começo da manhã, ainda que fosse próximo ao meio-dia.

Com um corpo humano, mas com uma cabeça de bode, o visitante demonstrava alguma intimidade com Diogo, ainda que o chamasse pelo sobrenome. Trazia em suas mãos o brasão de armas conferido pelo rei quase um século atrás, por atos de bravura em nome da coroa enquanto Diogo desbravava os mares e os reinos dos homens de pele negra.

- Por que você está com isso na sua mão? – perguntou Diogo com uma careta.

Com cuidado retirou o antigo brasão das mãos do seu interlocutor e o repousou em um suporte simples em uma das paredes da sala de pouca luz. Balbuciou algumas palavras para si mesmo e voltou o olhar para o visitante.

- Você conseguiu a lâmina de Belphegor, uma arma apropriada para nosso intento. - disse o homem que trazia características caprinas em sua cabeça. – Verás que toda a busca dos últimos anos por esta arma valerá a pena.

O pentagrama invertido em sua testa gotejava sangue que escorria pela cara peluda de tempos em tempos e a mancha seca e escura era um detalhe fixo na face.

– Meu sangue o protegeu da lâmina, estou certo? – perguntou ele de modo retórico.

Diogo o encarava com os olhos ainda semicerrados e o cenho franzido.

- Você ouviu a parte em que fui surpreendido por um Asimani no meio do dia? - disse ele elevando o tom de voz.

A feição apática e sem expressão da criatura dizia muito pouco, mas Diogo acreditava ter visto o esboço de um sorriso debochado ao passo que o homem com cabeça de bode apenas admirava suas próprias unhas avermelhadas.

- Belphegor é um dos sete príncipes comandantes de legiões. – disse o interlocutor sem encarar Diogo nos olhos. – Nada mais natural que os Asimani fizessem de tudo para ter tão poderosa arma em suas mãos.

- Venho caçando essas criaturas sob o seu comando pelos últimos cem anos, meu senhor. – disse ele demonstrando respeito, mas sua careta indicava contrariedade. – Essas criaturas não andam na luz do sol, como ele fez para chegar até lá?

Diogo ainda tateava seus ferimentos. A dor havia parado, mas queria ter certeza de que estava completamente curado da queda e dos ossos quebrados.

- Não era um Asimani. – respondeu o mentor caprino. – Você já eliminou cada um deles nesta terra, eles não ousariam voltar, pois teriam mais a perder e talvez estejam com dificuldades de repor suas fileiras.

- Então o que era aquilo?

- Um Adzé. – respondeu o mentor que exalava enxofre. – Um servo dos asimanis que se move através dos insetos. Ao contrário de seus criadores, não é vulnerável ao sol e não precisa de um humano para vir a existir. Um monstro perigoso e mortal, mas mostra o quão forte os atingimos.

- Estão evitando se expor. – constatou Diogo. – Qual será nosso próximo passo então, mestre?

O homem com cabeça de bode sorriu com uma careta onde contorcia a face animal e deu uma breve gargalhada onde seus músculos chacoalharam. O monstro conseguia ser ainda mais feio sorrindo do que com o semblante sério. O que era particularmente incômodo, pois aquele rosto não havia sido feito para sorrir.

- Proteger a casa. – disse a entidade com a voz fúnebre. – Ele virá atrás dela esta noite, assim que os Asimani souberem o que escapou das mãos deles.

Alguns segundos de silêncio e então Diogo caminhou até a espada recém-adquirida e analisou cautelosamente, atentando aos detalhes serrilhados da lâmina, bem como às inscrições em latim que diziam: Devorador. Recordava que havia aprendido latim, enoquiano e algumas línguas mais durante o período de estudos com seu mestre com cabeça de bode em uma fortaleza abandonada no sul de Portugal.

- Então eles virão atrás de nós... – disse Diogo pausadamente, checava a janela com frequência. – O que iremos preparar para eles?

Com um gesto vagaroso o homem que se ocultava nas sombras indicou um livro de capa grossa e páginas avermelhadas, aberto sobre a bancada onde alguns legumes comprados uma semana atrás deveriam estar. Diogo esboçou uma reclamação, mas se deteve ao lembrar que não precisava comer fazia pelo menos cinco décadas.

O livro era marcado com uma tinta escura que sobressaia nas páginas. Parecia algum tipo de carvão ou outro composto místico que seu tutor gostava de tirar sabe-se lá de onde.

Entre os diversos rituais dispostos em diagramas confusos e aparentemente sem padrão, uma combinação de símbolos e palavras chamava a atenção pela uniformidade com a qual se apresentavam em meio ao caos de anotações e borrões.

- É um círculo de delimitação. - disse Diogo mais para si mesmo do que para seu mestre. – É bem trabalhoso, exige muita concentração para manter.

O mentor assentiu.

- Não seria mais fácil cortar a cabeça dele? Como temos feito com os outros?

- Preste atenção. Um adzé não pode ser morto assim. – respondeu mudando o tom de voz e arregalando os olhos. – Eles simplesmente trocam de um corpo para outro e continuam vivos.

- Pois bem. – respondeu Diogo coçando a barba e analisando os detalhes do ritual. – Vou começar a entalhar as paredes, afinal a noite vai ser longa.

Fechou o tomo e o colocou debaixo do braço. Abriu a gaveta de madeira rústica e retirou um buril embrulhado com outros instrumentos.

O sol ainda brilhava forte, portanto algumas horas de segurança estariam garantidas para terminar o projeto. Escolheu a parede de trás da casa para começar e, sem demora, iniciou a talhadura complexa e detalhada de símbolos que datavam do Egito antigo. 

Diogo CãoWhere stories live. Discover now