Capítulo V

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Diogo chegou em sua casa e notou, sem espanto algum, que seu mentor havia partido. Como ele não possuía corpo físico, sempre tomava emprestado o corpo de alguém que estivesse perto da morte e então utilizava o invólucro enquanto a matéria conseguisse sustentar suas energias. Apesar do contratempo, Diogo tinha a certeza de que seu mestre estaria lá no momento do embarque.

—Maldição, não vou poder pedir ajuda para o caso da Dolores. – disse para si mesmo começando a reunir seus poucos pertences e colocando em um baú.

Os primeiros raios da manhã apontavam no céu e Diogo teria apenas poucas horas para todos os preparativos da viagem. Quando em sua vida mortal, viajara para o interior da África em três longas missões. Fora um dos pioneiros das grandes navegações portuguesas, um grande comandante e respeitado. Porém, jamais estivera no novo mundo. Só ouvira rumores sobre o local e sua fama de ser pior do que o próprio Inferno, o que Diogo tinha motivos muito claros para discordar.

Seus poucos pertences eram gastos e datavam de mais de dois séculos atrás, quando ainda caminhava por estas terras como um humano comum. Extremamente talentoso com navegação e embarcações, mas ainda assim um reles humano. Quando pôs a mão sobre um objeto em particular, um apito de madeira usado para chamar a atenção da tripulação, suas memórias o levaram aos seus últimos dias de vida.

Então viu-se novamente no Reino do Kongo, cercado de inimigos armados com lanças e outras armas inusitadas. Seus homens morriam como animais no abatedouro e Diogo demorou alguns instantes para perceber que aqueles homens de pele escura lutavam ao seu lado, enfrentando as criaturas de pele cinzenta e dentes de ferro. Os monstros estraçalhavam qualquer um que se dirigisse contra eles com a mesma facilidade.

Diogo visitava a região pela segunda vez e ainda sentia nos dias de hoje o gosto dos temperos e da comida preparada pelos locais. Servia ao Rei de Portugal e fora muito bem recebido por aquelas bandas, recebendo o tratamento de um verdadeiro monarca, ainda que fosse apenas um explorador a serviço da coroa.

Ele se lembrava muito bem do som que aquele apito produzia ao ser soprado por uma boca cheia de sangue. Soprava desesperado esperando que seus homens que ainda estavam no navio viessem ajudá-lo ou que escapassem de vez daquele lugar maldito. Levou à mão até os locais onde os monstros haviam mordido e as mãos estavam encharcadas com o sangue. Diogo ainda se impressionava como tais memórias eram tão vivas mesmo depois de tanto tempo.

Quando diante da morte, em meio à dor e ao desespero, você aceita qualquer ajuda para se salvar. Ruim mesmo é quando essa ajuda não vem de lugar nenhum. Diogo era um viajante experimentado antes as condições adversas e já havia sobrevivido a naufrágios, ataques de piratas, doenças e nativos enraivecidos. Aquilo, porém, beirava um nível além da compreensão. O trauma da morte permanece com você, mesmo quando a vida deixa seu corpo e você descobre que ela continua. Para alguns, ela segue em um local repleto de chamas, correntes e gritos de agonia. E o cheiro de enxofre misturado ao de carne apodrecida é algo que não deixa suas narinas mesmo depois de décadas. O Inferno era um lugar peculiar.

Diogo saiu do transe de suas memórias e guardou os últimos objetos no baú que levaria consigo no navio. Poucas peças de roupa, algumas adagas, algumas lembranças de sua vida mortal e um quadro com a pintura de sua família. Teve um instante de dúvida com relação a espada de Belphegor e se percebeu olhando para a lâmina enquanto pensava na utilidade real da arma. Sem saber muito bem como utilizá-la, optou por deixar a mesma dentro do baú. Se havia aprendido uma coisa importante nos últimos séculos caçando demônios, era que uma arma poderosa lhe valia de nada caso estivesse nas mãos do seu inimigo.

Do lado de fora do casebre na região afastada do grande centro, raramente se via movimento. Após terminar de arrumar seus pertences para a viagem, Diogo espiava a janela a todo instante. Caminhava pela casa, muitas vezes em círculos, pensando no que poderia fazer para ajudar Dolores antes de partir.

Resolveu vasculhar os diversos livros que deixaria para trás, em um alçapão preparado especialmente para tal finalidade. Desceu as escadas, mas se deteve ao ouvir batidas secas em sua porta. Fechou a tampa que dava na precária escadaria de madeira barata e arrastou com o pé esquerdo um tapete velho como disfarce para a entrada. Checou sua arma de prata presa à cintura, uma adaga simples, e dirigiu-se até a porta caminhando na ponta dos pés e respirando vagarosamente.

—O que deseja? – perguntou Diogo.

—Mestre Diogo, sou Pedro Sal. – respondeu a voz masculina e ligeiramente aguda por detrás da porta. – Fui enviado para cuidar da propriedade na sua ausência.

Diogo empertigou sua postura e esticou sua roupa, deixando a adaga visível. Abriu a porta que rangeu de maneira sofrida e ficou ali parado, observando o homem que media metade do tamanho de Diogo, batia em sua cintura. Vestia roupas elegantes da corte portuguesa e tinha a barba bem aparada. Parecia uma criança no tamanho, mas homem de avançada idade na aparência. Os olhos tinham bolsões arroxeados, daqueles que são forçados a passar exaustivas horas em meio a livros e iluminação ruim.

Diogo assentiu com a cabeça e saiu do caminho para que o homem pudesse entrar com suas duas malas.

—Quem enviou você? – perguntou Diogo após checar os dois lados a rua deserta e bater a porta contra o batente, o que a trancava.

O homem colocou suas malas em um canto e coçou a cabeça com mais força do que o normal, arrancando um pedaço da pele e revelando sua real forma: Esverdeado.

—Mestre Baphomet ordenou que eu viesse para cá na noite passada. – disse Pedro reparando na casa simples e passando o dedo no fogão a lenha empoeirado.

—Então você também é um demônio, não é? – disse Diogo encarando o diminuto homem.

—Pois sim. – respondeu. – Sirvo ao mestre faz cinco séculos como estudioso. Busco os livros que ele deseja, decifro pergaminhos, reúno ingredientes para os rituais. Estou sentindo o cheiro dela.... Vocês pegaram a espada de Belphegor!

Diogo encarava o diminuto visitante que moraria em sua casa. Perguntava a si mesmo se seu mestre precisaria de alguém como aquele demônio para as funções que ele havia narrado. Baphomet era poderoso e sábio, talvez o utilizasse como um informante especializado, assim como fazia com Dolores.

—Você sabe das coisas. – disse Diogo, que arrastou uma cadeira e se sentou. – Preciso explicar alguma coisa sobre a casa?

—Não. – respondeu Pedro sem olhar para Diogo. Estava ocupado esvaziando sua mala com as mais diversas quinquilharias. Lunetas, mapas, bússolas....

Conforme Pedro terminava de se alocar pela casa, Diogo pensava na importância de manter aquele imóvel em particular. Haviam os livros, obviamente, mas no fim, era apenas mais uma casa em Lisboa. Os livros trazidos pelo homem eram, em sua maioria, escritos em latim. E um deles em particular contractus daemonia chamou a atenção.

Diogo se aproximou do livro, mas evitou pôr as mãos, pois sabia como certos indivíduos tendiam a ser agressivos com suas posses. O problema de Dolores voltou a latejar na cabeça e naquele livro parecia haver a solução.

—Esse livro trata dos acordos de permanência de demônios na Terra, Pedro? – disse Diogo com o olhar fixo no livro e indicando o mesmo com um dos dedos.

—Talvez.... – respondeu Pedro erguendo uma das sobrancelhas e parando sua arrumação. – Qual seu interesse no assunto?

—Uma pessoa que gosto muito pode precisar deste conhecimento dentro em breve.

—Isso é ridículo. – retrucou Pedro com uma gargalhada. – Não aprendeu isso ainda? Demônios não gostam de ninguém. Temos interesses em comum.

Pedro retirou o livro do alcance de Diogo e o guardou de volta em seu baú, trancando o mesmo a sete chaves.

Diogo resolveu deixar o livro para lá, afinal não conseguiria convencer aquele demônio tão velho a ajudar Dolores. O melhor a fazer seria ficar atento e preparado para eventuais ataques de inimigos remanescentes.

Diogo CãoWhere stories live. Discover now