Capítulo VI

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O cais no início da manhã exalava um odor peculiar, um fedor não era pior do que nas outras partes do dia. Diogo, no entanto, não cansava de se impressionar com a facilidade com a qual as pessoas que precisavam comer ou respirar suportavam aquele aroma de peixes misturado à pólvora e urina. A julgar pelo nível das pessoas que transitavam pela região indicada por Dolores, era certo que nobres não embarcavam por ali. Os tipos mais maltrapilhos e desdentados podiam ser vistos trabalhando nas embarcações que chegavam dos mais diversos cantos dos mares. Com alguma observação Diogo poderia saber exatamente de qual a procedência daqueles barcos, contudo ele estava mais preocupado em descobrir qual a forma que seu mentor tomaria durante a longa travessia entre a metrópole e a colônia. Viagem esta que faria pela primeira vez.

—Maldição, pode ser qualquer um.... – murmurava Diogo para si mesmo, caminhando entre mendigos e marinheiros.

—Eu tenho um gosto peculiar para defuntos, Cão. – disse a voz em tom grave, saindo das sombras, roupas em andrajos.

Diogo reagiu com um sobressalto. Odiava ser surpreendido e seu mestre tinha a habilidade natural de se mesclar com as sombras, mesmo durante o dia, não importava o corpo em que estivesse.

—Você demorou a chegar. – disse o mentor que vestia o corpo de uma criança com não mais que treze anos. A voz era sempre a mesma e o característico pentagrama invertido demorava a aparecer. A cabeça só se transformava nas características caprinas nos estágios finais de utilização do corpo.

—Nosso navio deve ser aquele. – disse Diogo apontando para uma caravela que recebia os suprimentos finais para a viagem.

Um grupo de escravos era levado através de correntes por um homem que portava três pistolas. Diogo atentava para o fato de que um homem que carrega uma pistola, talvez saiba utilizá-la, caso carregue duas, é provável que seja bom atirando, mas em se tratando de três, era alguém que sabia bem o que estava fazendo.

Diogo dirigiu-se até a embarcação e fora seguido por seu mentor. Tinha os documentos em mãos, preparados com facilidade por Pedro Sal na noite anterior. Foram recebidos por um homem de barba farta e que não tinha uma das pernas. Nenhum dos membros da tripulação trabalha para coroa, Diogo pensava analisando os homens que serviam na caravela.

—Um marujo e seu aprendiz. – disse o homem correndo os olhos pelos papéis. – O que pretendem fazer na colônia?

—Somos artífices. – respondeu Diogo de maneira displicente. – Vamos montar nosso negócio com a permissão da Coroa.

Constantemente homens passavam pelo convés, o que mostrava uma tripulação maior do que o comum para um navio daqueles. Digno de nota era o fato de que todos os homens da tripulação portavam armas de fogo.

—Carregam ouro com vocês? – perguntou o homem apontando para o baú de Diogo. – O que tem aí dentro?

—Não lhe diz respeito. – disse Diogo perdendo a paciência. – Temos o documento, podemos embarcar ou não?

O homem saiu do caminho e fez um gesto de mesura com a cara mais cínica que sabia.

O convés do navio era sujo, mesmo para os padrões de uma embarcação daquele nível. Constantemente pessoas acorrentadas eram transportadas de um lado ao outro do navio. Homens e mulheres de peles brancas e negras. Muitos deles tinham o corpo marcado por cicatrizes e em alguns faltavam membros ou olhos. Diogo torceu o nariz para a cena repetitiva e dirigiu-se para os aposentos, que sabia seriam minúsculos. Deixou seus pertences no cômodo e ficou acertado que seu mestre ficaria por ali, para evitar contato com o sol. Diogo escolheu um lugar no convés e se recostou junto ao mastro, observando o ir e vir dos homens da tripulação.

Ao final do quarto dia de viagem, já em alto-mar, a maior parte dos homens acorrentados começou a ser libertada pela tripulação. Muitos deles se reuniam em grupos e Diogo reparava que pareciam aqueles homens pareciam se conhecer de longa data. Conforme brigas começaram a estourar em pontos variados do navio, após a primeira semana, Diogo se deu conta de que tipo de navio era aquele.

—Condenados.... Estão indo para o novo mundo recomeçar suas vidas, lidar com escravos e explorar as terras. – disse para si mesmo, satisfeito por haver percebido onde havia se metido. Estaria à vontade em meio aos desgraçados. Visitara o Inferno e retornara, aquele tipo de gente o deixava naturalmente relaxado. Sempre sabia o que esperar deles, sempre o pior.

Três homens forçaram a porta dos aposentos de seu mestre em uma das noites. Diogo sabia que ele aproveitaria a viagem para poupar forças e assim fazer com que esse corpo durasse até o novo mundo. Quando ouviu rumores sobre estupradores no navio, correu em direção aos aposentos. Em viagens como aquela havia poucas mulheres. Estupros eram mais do que comuns, sobretudo em se tratando de jovens frágeis. Exatamente a aparência adotada por seu mestre. A preocupação não era nem de longe com a segurança do mentor demoníaco, e sim, com o estrago que ele causaria estraçalhando aqueles homens.

Dos três, um se suicidara na manhã seguinte, cortando os pulsos com facas da cozinha. Os dois restantes apenas babavam e eram incapazes de produzir uma palavra quando foram encontrados caídos próximos à porta dos aposentos do mentor. Permaneceram assim pelo resto da viagem. Diogo pensou em perguntar ao seu mestre o que havia feito àqueles homens, mas preferiu manter-se ignorante. Em se tratando de quão sádico um demônio poderoso pode ser, o não saber é muitas vezes um privilégio.

Diogo CãoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora