Capítulo III

285 19 25
                                    


O cair da noite trouxe a brisa agradável do verão. Em poucas horas de trabalho ininterrupto, Diogo havia marcado as paredes com os símbolos dispostos no livro de seu mentor. Formas geométricas dispostas entre combinações de letras, números e rabiscos que pertenciam aos alfabetos mágicos ensinados pelo homem com cabeça de bode.

Após concluir a tarefa antes do previsto e secar o suor do rosto com uma toalha velha e imunda, Diogo voltou para dentro de casa e conferiu algumas das imagens no livro de folhas vermelhas. Enquanto folheava, perguntava a si mesmo como haviam conseguido páginas daquela cor.

- Ótimo trabalho com os símbolos, Cão. – disse o mentor.- Temos visita do lado de fora.

Diogo caminhou até a janela e com a mão livre abriu uma das portinholas para enxergar o que os aguardava e com uma contagem rápida percebeu mais de vinte homens e mulheres, armados com facas, foices, machadinhas e espadas curtas. Todos traziam os olhos esbranquiçados e sem brilho algum.

- São homens e mulheres comuns.

- Estão controlados, Cão. – disse o mentor. – Não deixe que a aparência deles o engane, são condenados e dominados.

A turba se aproximou da casa e atacava porta, janelas e paredes. Com martelos, foices e outras armas comuns, atacavam furiosamente. Alguns se machucavam, ferindo as próprias mãos e braços, mas não era o bastante para detê-los. A casa aguentava bem os impactos e Diogo reparava a tranquilidade de seu mestre, ambos sabiam que aqueles mortais controlados não poderiam feri-los.

Quando a maior das janelas começou a ceder, Diogo sacou a lâmina de Belphegor e com a lâmina em riste aguardou a invasão. Com a abertura, todos os ataques cessaram, contudo os sentidos ampliados do caçador notaram a vibração sonora causada por insetos e seu bater de asas. Aos montes moscas invadiam a casa pela fresta aberta e assumiam a forma de um corpo humano.

Diogo esperava qual ação tomar, mas o silêncio do mentor com cabeça de bode só indicava uma coisa: deveriam aguardar o desenrolar daquela cena, afinal as coisas se encaminhavam como o previsto.

- Você roubou de mim algo precioso, Cão – disse o corpo formado das moscas. Um homem de pele negra, careca e com tatuagens por todo o corpo nu. – É imperativo que devolva.

O portador da espada não se moveu. Impassível e com a arma em riste, apontada para o recém-chegado aguardava. Por detrás de Diogo seu mestre encarava o adversário, com cabeça baixa e olhos erguidos.

- Tenho escravos por toda cidade – continuou o homem formado das moscas com os braços torneados abertos, indicando a amplitude de seus poderes. – e devo dizer que vocês prestaram um grande serviço eliminando todos os senhores aos quais eu era forçado a servir. Aumentaram minha influência.

- Adze, você é uma praga de casta inferior. – disse o mentor com a calma com a qual sempre falava. Nada parecia capaz de tirá-lo da eterna complacência. – Só está vivo ainda porque permitimos. Você não escapou de nossa caçada, apenas foi deixado para o final.

O inimigo bufou em desagrado e mesmo assim não perdeu a postura confiante.

- Diga, porque nenhuma das bestas retornou à estas terras? – continuou o ser com cabeça de bode. – Eu o comando!

A inflexão na voz do mentor estremeceu as paredes e janelas, causando rachaduras.

- Pode bradar o quanto quiser, Baphomet. – redarguiu o invasor em tom debochado. – Sei de sua condição limitada, sem poderes, sem seu corpo poderoso. Mesmo após séculos nunca se recuperou do golpe que os religiosos causaram quando destruíram seus cavaleiros na fogueira.

- Libere o óleo, Cão. – disse o mentor voltando ao seu tom natural e gesticulando com uma das mãos em direção à Diogo.

Seguindo o comando de seu mestre, Diogo sacou um frasco vítreo que continha uma pequena quantidade de óleo esbranquiçado. Sacudiu o recipiente e o atirou sobre os pés do inimigo, recitando palavras em um alfabeto morto há tempos e que interagiram com o líquido esparramado pelo chão. As borbulhas começaram conforme o material esbranquiçado reagia à força das palavras proferidas por Diogo e que dobravam a realidade. O esgar de dor do oponente indicava que o ritual fora bem sucedido, pois queimava o homem de pele negra. O oponente se contorcia, levava às mãos ao rosto, urrava.

- Diga, Adze. Onde estão seus mestres? – perguntou Baphomet. O demônio ancestral caminhou até o adversário que se contorcia e colocou o dedo indicador no peito do inimigo. – Essa dor pode parar ou podemos fazer você arder até esse corpo se desfazer para sempre.

Diogo dividia a atenção entre o demônio que ardia com chamas invisíveis aos olhos, se debatendo e urrando em desespero, e a cena do lado de fora do casebre, onde os humanos que foram arrancados de suas casas no meio da noite pelo comando de Adze e sua vontade sobrepujante começavam a recuperar o controle de suas ações. Perdidos, deixavam as armas rústicas caírem no chão e tais quais sonâmbulos de olhos abertos, dispersavam e seguiam o caminho que Diogo acreditava ser de suas próprias casas. Era melhor assim, ele pensava. Detestaria ter que chacinar tantas pessoas por nada.

- Faça parar, ó grande senhor! – urrava o demônio das moscas, mas de joelhos sua postura era de súplica. – Eu digo tudo que deseja saber, não existe lealdade entre os nossos!

- Onde estão os mestres? – perguntou o mentor mais uma vez e sem alterar sua voz, manteve sua cara próximo à do demônio ajoelhado.

- No novo mundo, mestre da escuridão! – respondeu Adze e em seguida levou as mãos de encontro aos seus olhos que sangravam. – Faça parar! Faça parar!

Diogo estava prestes a cancelar o ritual, quando foi detido pela mão de seu mentor que sinalizava para continuar aonde estava. O ser da cabeça de bode entoou um cântico antigo com sons guturais, e o caçador atentava para o fato de que tais sons não poderiam ser reproduzidos por cordas vocais humanas. Conforme as palavras carregadas de energia eram entoadas, Adze gritava ainda mais.

O som dos estalos chamou a atenção de Diogo. Ossos partindo e órgãos estourando produziam uma sinfonia macabra que crescia ao mesmo tempo que os gritos da criatura cessavam. Em instantes, todo som havia parado e um amontoado de moscas jazia sobre óleo esbranquiçado e espalhado pelo chão.

- Está acabado. – disse o mentor com o seu costumeiro tom que não denotava emoção alguma. – O corpo que ele havia pegado emprestado pertencia a algum escravo, isso que sobrou é a verdadeira forma de Adze.

Diogo demorou alguns instantes para digerir a informação. Sua mente ainda absorvia o fato de que seu mentor estava longe de possuir todo seu poder e mesmo assim demonstrara nas últimas décadas conhecimento e energia para dobrar a realidade ao seu bel-prazer, derrotar inimigos com poucos gestos e sobreviver a todo tipo de dano.

- Então nosso destino será na colônia? – perguntou Diogo, enquanto devolvia a lâmina de Belfegor a sua bainha.

- Contate nossos informantes no cais. – disse o mentor. – Existe uma disputa pelo tesouro que esses demônios bebedores de sangue carregam. Precisamos partir na próxima caravela.

Diogo assentiu, recolheu sua capa do suporte próximo ao forno que nunca fora usado e servia como cabideiro, a jogou por sob o corpo e saiu na escuridão para realizar mais uma missão em nome de seu mestre. No caminho, enquanto pensava que tesouro tais criaturas poderiam possuir que interessasse a alguém tão poderoso, Diogo se recordou que fazia onze dias que não dormia. Ignorando o fator sono, disse para si mesmo: Certamente não era ouro.

Diogo CãoWhere stories live. Discover now