Capítulo I - Estrada para o inferno

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I'm on the highway to hell. On the highway to hell! Canta, filha. Highway to hell. I'm on the highway to helleleleleeeeeeeel. Poxa filha, que sem graça... Ela não está ouvindo nada...

Às vezes as pessoas só dão valor às coisas boas de suas vidas depois que perdem. Tenho saudades das minhas manhãs barulhentas. Meu pai começava o dia como se tivesse sido eletrocutado consecutivas vezes pelo despertador. Seis e meia da manhã, ele pulava da cama, tomava banho, preparava o café, e acordava todo mundo. Eu e minha mãe nem precisávamos de despertador. Quando não eram os passos apressados na madeira de um lado para o outro, era a cantoria, ou o sapateado, ou tudo junto. E não adiantava falar, era o jeito dele, a "quinta série" dele, cheia de felicidade e um dos motivos pelos quais minha mãe se apaixonou por ele na quinta série. Resumindo, eles deram seu primeiro beijo naquela época e nunca mais desgrudaram. Isso me conforta, saber que eles ainda têm um ao outro.

Meus pais são donos de uma oficina mecânica no centro da cidade. Começou como um negócio de garagem no bairro e cresceu tanto que eles compraram um espaço grande, contrataram um monte de gente e garantiram o nosso ganha-pão. Minha mãe administra as finanças, contratos, fornecedores, sistemas e tantas outras coisas que não conheço ou entendo. Ela gosta de ficar no canto dela, entre uma cadeira e um teclado, digitando tão rápido que parece que seus dedos vão ganhar vida e sair andando. Já meu pai não consegue ficar parado e imagino que isso nunca mudará. Ele gosta de estar no meio da ação, mesmo que a oficina tenha mecânicos suficientes para todo o serviço, lá está ele, desmontando motores, ajustando eixos, instalando acessórios. Funilaria, pintura, balanceamento, revisão, cambagem e serviços relacionados. Meu pai falava destas coisas para nós como se estivéssemos entendo tudo. Isso quando não estava cantando, ou sapateando, ou tudo junto.

A escola onde eu estudava ficava na metade do trajeto de casa até a oficina, então meus pais me levavam todos os dias. Por um pedido meu, eles me deixavam na rua paralela, e eu andava o restinho do caminho. Meu pai colocava o rádio nas alturas, abria o vidro, podia estar um frio antártico ou um calor saariano, e saia por aí cantando de AC/DC até Tom Jones. Os dias de "rock pauleira" eram os piores. Não consigo entender como ele conseguia ouvir aquela barulheira logo cedo. E queria que a gente cantasse junto. Minha mãe resistia, mas eventualmente o acompanhava. Eu, suposta "adolescente rebelde", colocava fones de ouvido e ficava ouvindo "dez horas de um ventilador ligado" que eu mesma gravei para abafar as manhãs barulhentas, mas pelo retrovisor eu sabia exatamente o que meu pai estava cantando ou o que estava dizendo. Só não respondia. Ficava em silêncio, o silêncio rebelde. Que idiota eu era. E a minha memória, que maldição ela pode ser. Eu me lembro de cada música que ele cantou naquele dia, e nos seguintes. Tenho saudade das minhas manhãs barulhentas.

Era semana de provas. Meu rendimento em todas as matérias era razoável, exceto em matemática, que era excepcional. Os números eram a minha praia, minha matéria favorita. Como de costume na escola, eu ficava na biblioteca no período da tarde para ajudar os alunos com problemas em matemática e ganhava uns créditos extras, assim não precisava frequentar algumas aulas eletivas, como educação física ou artes. A primeira vez que conversei com os três foi em meu primeiro ano de "monitoria", na sétima série, quatro anos antes do ocorrido.

Augusto foi o primeiro, o mais falante do grupo. Ele não era da minha sala, acho que era da turma C ou D e eu sempre fui da A. Eu só o conhecia de vista, e a minha primeira impressão de Augusto era de um moleque muito, muito chato. Sabe quando você não vai com a cara da pessoa? Nós nunca havíamos conversado, nunca caímos na mesma sala. Muitos garotos da minha sala não gostavam dele e acho que isso influenciava a minha opinião. Diziam que ele tinha gostos estranhos, encarava as pessoas com um olhar esquisito e altivo, e por algum motivo as garotas gostavam de conversar com ele em segredo (não era o meu caso na época). Os garotos da minha sala, e muitos outros da escola, tinham birra com ele e não entendiam como as garotas podiam gostar de conversar com um garoto estranho. E ele não ligava para as provocações. Ficava quieto, não reagia, mesmo quando lhe apelidaram de "Bolinha". Augusto era no máximo gordinho. Posso afirmar que ele não era nem de longe o mais gordinho da turma dele, nem da minha, mas alguém cavou fundo para descobrir que ele era inseguro com relação à sua aparência. Posteriormente ele me disse que foi o irmão de uma das garotas que conversava com ele, que a pressionou até que revelasse alguma coisa. Ainda assim, ele não respondia, não reagia, mas isso mudou a vida dele de alguma forma. Depois do apelido, ele só andava de blusa, não importava o calor que fizesse. No verão você podia vê-lo de longe, com a testa brilhando de suor. Isso fez com que as garotas que conversavam com ele se afastassem, e ele foi rebaixado completamente no microcosmo da nossa escola. Seu rendimento caiu e foi como nos encontramos nas aulas de reforço na biblioteca.

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