Capítulo IV - Primeiro passo

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Você chegou à metade deste relato e eu agradeço por me ouvir até aqui. Na verdade, deixe-me corrigir. Obrigada por ler até aqui. Se você entendeu a diferença de "história" e "relato" que comentei no início, não perdeu seu tempo procurando por um vilão ou por um culpado e está apenas me deixando contar a minha versão dos fatos, mas se não entendeu... Bem, se não estava óbvio, acho que ficou com minha última frase. Sei que sou culpada e vítima, mas não vilã. Não quero ser lembrada por você por algo que não sou. Isso tem que ficar muito claro entre nós, tudo bem?

O assunto que vou abordar agora talvez possa te deixar um pouco desconfortável. Qualquer tópico que se refira à nossa intimidade acaba sendo um tabu em famílias ou mesmo nas escolas, ambientes que deveriam se responsabilizar e nos ensinar que a intimidade do ser humano é psicológica e não somente biológica. Principalmente por esta dificuldade na abordagem ou na banalização do assunto, no microcosmo escolar uma das principais reações relacionadas à sexualidade é ativar a "quinta série" que habita nos alunos, e com o tempo espera-se que a frequência desta "ativação" diminua ou desapareça, num mundo ideal, mas estamos falando do mundo real, não é mesmo?

Eu hesitei e até mesmo pensei em reservar esta memória, mas o contexto do meu relato exige que eu seja transparente com você. Chegou a hora de lhe contar sobre Roberto e a única vez em que sofri bullying de verdade na escola. Foi uma situação um pouco traumática, mas hoje superada. Não foi por conta da minha aparência, por algum traço peculiar, situação social ou econômica, preferência sexual, não foi por um segredo e nem por algo que disse ou fiz, ou pelo menos não algo que fiz de propósito.

Voltemos para a minha quinta série, a quinta série de verdade e não a da teoria de Andreia. Aconteceu em uma aula de ciências. Eu não sei se a grade curricular de outras escolas funciona diferente, mas a nossa tinha ciências até a quinta série (lembrando, sexto ano) e no ano seguinte esta disciplina se desmembrava em três: química, física e biologia. Esta informação é importante para o meu relato, pois apenas na aula de biologia, e não de ciências, que os primeiros assuntos referentes à intimidade do corpo humano foram abordados. Perceba que até hoje tenho dificuldade em ser direta neste tipo de assunto, pois fora um tabu em minha casa e também na escola, mas nada que um evento traumatizante não pudesse piorar.

Não posso dizer que aconteceu de repente, pois eu já estava me sentindo estranha. Comecei a sentir cólicas intensas na noite anterior e elas se intensificaram pela manhã. Fiquei quieta no meu canto, achei que pudesse ser o meu intestino, apesar de desconfiar que não fosse. Por pura falta de conhecimento e timidez, eu fiquei ali, sofrendo durante o decorrer das aulas.

Senti de repente que minha cadeira estava molhada, e olhei para baixo. Minha calça azulada e a cadeira em tom bege estavam manchadas de vermelho escuro. Eu sabia que não estava morrendo nem nada assim, mas nunca ninguém me explicou que poderia acontecer desta forma. Foi um tremendo susto. Minha primeira menstruação aconteceu no mês anterior, mas não foi um banho de sangue. Eu não tinha a mínima noção de que poderia ser tão... Assim... Feia. Não estava preparada para lidar com esta situação.

A primeira coisa que se passou na minha cabeça foi esconder, mas antes que eu pudesse pegar minha blusa, que estava dobrada no suporte logo abaixo da cadeira, um garoto ao meu lado estava gargalhando e apontando para mim.

— Ela se borrou toda! Ela... Isso é sangue!

Você já deve imaginar e eu não farei suspense em dizer que o garoto era Roberto. Ele não sabia se ria ou se ficava espantado, mas não parava de apontar. Percebi que todos os olhares da sala estavam voltados para mim. As meninas ficaram sem reação. Algumas até sabiam o que estava acontecendo, agora os meninos... Quando a "quinta série" é ativada em um, às vezes parece que acontece uma reação em cadeia, talvez até seja algo natural como quando uma pessoa vê a outra bocejando e boceja também, e dependendo do caso uma vai bocejando atrás da outra, parece que não vai parar mais. Talvez você até boceje ao ler isso. Eu bocejei ao escrever.

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