Capítulo III - Eclipse

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A morte misteriosa de Felipe virou manchete nos jornais da cidade. Ele foi encontrado por seus pais na manhã após o eclipse, deitado de barriga para cima, inerte, e sorrindo. Mesmo durante as tentativas de reanimá-lo seu rosto voltava para a mesma expressão de felicidade. Seu corpo passou por extensivos exames realizados por médicos renomados da região, que não foram capazes de determinar a causa mortis.

Meus pais receberam uma ligação da escola durante o período da manhã, comunicando a morte do aluno Felipe Campos, o horário do velório e que a escola ficaria fechada em luto pelo restante da semana. Eu só recebi a notícia mais tarde, quando eles chegaram para o almoço. O choque foi tamanho que vomitei meu café da manhã instantaneamente. Não tive tempo para me preparar, sentir o estômago embrulhando e sair correndo para o banheiro. Eu só vomitei e fui invadida por um sentimento aterrorizante. Por mais absurdo que fosse pensar nisso naquele momento, eu já estava me culpando pela morte de Felipe e pelo ritual ter dado certo de alguma forma. Meus pais se assustaram com a minha reação e eu acabei gritando quando tentaram me tocar. Corri para o banheiro, lavei a boca, o rosto, chorei muito, entrei em pânico. Cada batida insistente na porta me agoniava ainda mais e eu não sabia o que fazer. Sentei no chão do banheiro e fiquei lá até a maré de desespero passar. Acalmei minha respiração, deixei meu coração desacelerar. Eu precisava pensar com clareza. Devia ser uma coincidência. Outra coincidência? Sim, tinha que ser. Até parece que alguém morreria porque quatro pessoas comeram um pedaço de carne crua durante um eclipse. Mas aquela parte de mim que falava um pouco mais alto estava ali, gritando, dizendo que o ritual funcionou, e eu me recusando a acreditar.

Além de Felipe ser da minha sala, descobri que o professor João "Franzino" era um cliente regular do meu pai, portanto não comparecer ao velório não era uma opção. Ironicamente, a escolha musical para o caminho de ida e volta foi o álbum Dark Side Of The Moon do Pink Floyd. Para os que não conhecem o álbum, a ironia mais óbvia está no nome da última faixa, chamada Eclipse, mas o que me embrulhou o estômago novamente foi o fato de o álbum começar com um coração batendo, gradativamente mais alto, e no ápice do seu fim (que é a própria faixa Eclipse), terminar da mesma forma, porém com as batidas ficando cada vez mais baixas até se tornarem inaudíveis. Quando o álbum começou a tocar, parte de mim dizia que aquele coração era o de Felipe, e que sua morte não era uma mera coincidência, nem a escolha do álbum.

Não sei você, mas eu sempre associei a palavra "cemitério" a um local ermo, cheio de lápides de diferentes tamanhos e formas, cruzes, mausoléus e estátuas religiosas, mas o cemitério onde Felipe fora enterrado tinha uma beleza sem igual. A entrada era florida e bem cuidada. Tinha um caminho estreito asfaltado com uma faixa para os que chegavam e uma para os que saíam, cercado por árvores que formavam um túnel. Passamos por uma placa que indicava "Ala A" do lado esquerdo e "Ala B" do lado direito, e depois viramos na "Ala D". Homens de terno e gravata indicavam para que parássemos o carro na lateral do caminho, seguindo uma sequência de carros sem fim. Depois de estacionar, andamos por muitos metros até um salão branco, cercado por vidro e fechado com cortinas azuis. Ao lado esquerdo do salão estava o cemitério em si, que mais parecia um campo plano de grama bem cortada. As lápides eram rentes ao chão, padronizadas, diferenciadas apenas pelas flores deixadas, ou não, por pessoas que visitavam.

A entrada do salão, onde acontecia o velório, estava lotada. Havia uma multidão do lado de dentro e também do lado de fora. Centenas de pais, professores, familiares e conhecidos foram prestar suas homenagens ao garoto falecido. Os pais de Davi e Andreia estavam lá, mas assim como muitos alunos que eram provocados, humilhados e perseguidos, seus filhos estavam ausentes. Eu era uma das poucas pessoas presentes que não tinha uma relação amistosa com Felipe.

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