Capítulo II - A carne e o poder que ela possui

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O trabalho artesanal era perfeito. Cada detalhe, o entalhe realista do corvo, as penas, a textura das páginas, o cheiro que não era de livro. Augusto devia ter gasto muito mais do que cem reais para um trabalho desse nível, então, eu, Davi e Andreia discutimos sobre a possibilidade da partida de RPG enquanto Augusto tomava banho. Fazia menos de uma semana que ele terminara sua maratona anual de filmes sobre pessoas jogando RPG, de onde achávamos que ele havia tirado a inspiração para a ideia do livro. Sempre que ele fazia esta maratona, voltava a falar de RPG, introduzindo o assunto devagar, com indiretas e citações do filme que chamava de "o clássico dos clássicos", uma produção de baixo orçamento de 2002 chamada The Gamers.

Esta não seria a primeira vez. Desde que conheci Augusto, um dos assuntos recorrentes, e ignorados pelo grupo, era o RPG, mais especificamente jogar RPG conosco. Não confunda com RPG de videogame. Augusto abominava que o mesmo nome era usado para jogos tão distintos. Se você conhece RPG de mesa, direi o óbvio, mas se não, estamos falando de jogos com fichas de papel, dados de vinte lados, tabuleiros quando necessário, livros imensos de mestre e jogador, bestiários, missões que duram horas, campanhas que poderiam durar anos. Ele conhecia um grupo de pessoas que jogou a mesma partida por dez anos!

O sonho de Augusto era que o quarteto se juntasse toda semana ou a cada quinze dias, e se aventurasse por calabouços matando dragões, ou vivesse como vampiros alucinados. Os demais, me incluo nessa, não compartilhavam do mesmo entusiasmo pela ideia. Eu preferia baralho, truco, algo mais rápido e portátil. A religiosidade do RPG não me atraía. Talvez o livro do corvo fosse sua cartada final, uma forma de introdução para algum sistema de RPG novo, um pouco mais macabro que os de vampiro e lobisomem que ele nos mostrou no passado, mas chegamos à conclusão que seria o único motivo aparente para Augusto se empenhar e gastar tanto. Andreia concordou em pagar a aposta depois da nossa discussão, mesmo relutante, pois sabia que, quando Augusto admitisse que era só uma partida de RPG, devolveria o dinheiro. Fizemos um voto de silêncio sobre nossas conclusões e decidimos deixar rolar para ver no que iria dar esta história.

— E aí, Gu? Vamos ver o que mudou nessa versão? — Disse Davi.

Eu não entendi a colocação, e a cara de interrogação de Andreia denunciou que ela também não.

— O primeiro livro só tinha uma página escrita, com a primeira "parte" do ritual. — Explicou Davi. — A gente executou o ritual, apareceu outro livro, tem que ter uma continuação.

Meu celular tocou. Meus pais estavam me esperando do lado de fora. Augusto demorava muito no banho e nós, deliberando como um júri num tribunal para julgar a veracidade do caso de Augusto, não notamos o tempo passar. Eu já tinha combinado com meus pais que iriamos almoçar no Belo's, uma churrascaria perto da casa de Davi, que aproveitou para pegar uma carona conosco.

Pedi para Davi não comentar no carro sobre a nossa empreitada da madrugada e eu já tinha uma desculpa preparada para o dedo cortado. Quando entramos no carro estava tocando Rock or Bust do AC/DC, o que significava que ele estava no fim da discografia da banda e eu torcendo por algo mais leve na sequência. Eu poderia arriscar e sugerir alguma banda, mas com meu pai as sugestões entravam por seus ouvidos, passavam por um processo psicodélico e qualquer coisa poderia sair. Como exemplo, uma vez sugeri que colocasse Kenny G e ele decidiu que estava na pegada do metal progressivo, e foram duas semanas de músicos virtuosos, solos intermináveis e as tais quebras de tempo que ele apontava como se eu e minha mãe estivéssemos entendendo alguma coisa. Tinha uma música do Dream Theater, Dance of Eternity, nunca vou me esquecer do nome. Quando começava a tocar, meu pai não parava de falar "Olha a quebra, olha a quebra, olha a quebra". Uma vez contei quantas vezes ele dizia isso durante a música: 108 quebras de tempo... Outra vez eu pedi MPB e ele colocou umas músicas "folk alguma coisa" de algum país nórdico. Enfim, era melhor não arriscar uma sugestão e ficar na torcida.

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