A tão chamada paz

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Gerlane ficara calada durante todo o trajeto de volta da Ilha, cansativamente religiosa e intolerante, até a fortaleza dos Vigias onde voltava para terminar seu treinamento; o sol se elevava no céu e os arredores passaram de pousadas e cidadezinhas pastorais para a estrada vazia e silenciosa que precedia o lar. Eles estavam perto de casa, e dava para ver as águas de Ness à esquerda, ondulando com o vento gelado. Gerlane se imaginou jogando-se nelas, e estremeceu ao pensar no frio.

- Você está bem? - perguntou Teal, que também mal falara durante a maior parte da viagem.

Ao contrário de seus companheiros Guardiões, a Ordem dos Vigias incentivava que seus aprendizes viajassem um pouco após alguns anos de treino, os mestres defendiam que essa pausa ajudava a aliviar a mente e organizar os pensamentos dos mais novos, todos sabiam disso no momento em que começaram. Isso não impedia os dois de sentirem-se nervosos por retornar, entretanto. Era possível sentir a ansiedade fluindo deles em ondas.

- Estou bem - respondeu ela.

Os dois viraram na estrada comprida e branca que se estendia ao longe, na direção da fortaleza. Ela olhou pela janela e se assustou, saindo do devaneio subitamente.

- Teal, está nevando?

- Acho que não.

Entretanto flocos brancos caíam diante das janelas da carruagem motorizada, um pequeno protótipo que buscava reproduzir um veículo dos Antigos, acumulando-se no pára-brisa. Teal a estacionou, então baixou uma das janelas e abriu a mão para pegar um floco. Ele recuou a mão e sua expressão ficou sombria.

- Isto não é neve - falou ele. - São cinzas.

Gerlane sentiu seus instintos de combate acordarem com uma pontada enquanto ele voltava a ligar o motor da carruagem e eles avançavam, dando a volta na esquina. À frente, onde deveria erguer-se a fortaleza dos Vigias, negra contra o céu cinzento de meio-dia, via-se uma concentração de fumaça. Teal xingou e girou o volante para a esquerda; desligando-a sem esperar um segundo. Ele chutou a porta para que abrisse e saiu do veículo; Gerlane o seguiu um instante depois.

Sua casa fora construída sobre um imenso lote de terreno verde que se inclinava para o lago onde o Leviatã estava selado. O edifício central era de pedra negra, com um solar delicado circundado por pórticos em arco. Ou pelo menos tinha sido. Agora era um amontoado de madeira e pedra fumegantes. Pó branco e cinzas flutuavam densamente pelos jardins, e a garota engasgou com o ar pungente, erguendo uma das mãos para proteger o rosto.

O cabelo castanho de Teal estava todo salpicado com as cinzas. Ele olhou ao redor, a expressão chocada e incompreensível.

- Eu não...

Ele caminhou, se desviando da ruína fumegante do edifício central. Gerlane o acompanhou, embora não conseguisse evitar recuar, horrorizada, ao fitar os destroços chamuscados da estrutura que se projetava da terra: as paredes que sustentavam um telhado agora inexistente, janelas que explodiram ou derreteram, vislumbres de vermelho preocupantemente parecidos com sangue...

Teal parou à frente da garota. Ela andou até ficar do lado dele. As cinzas grudavam em suas, partículas entre o couro. Os dois estavam na parte principal dos edifícios destruídos pelo fogo. Dava para ver a água não muito longe. O fogo não tinha se espalhado, embora houvesse folhas mortas chamuscadas e cinzas sopradas ali também - e, em meio às cercas vivas aparadas, havia corpos. Vigias - de todas as idades, embora a maioria fosse mais velha - estavam esparramados ao longo das trilhas bem-cuidadas. Teal estava olhando ao redor, os lábios se movendo conforme ele murmurava os nomes dos mortos: Marcus, Rick, Amon, Mara.

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⏰ Last updated: Oct 20, 2018 ⏰

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Depois da EscuridãoWhere stories live. Discover now