De passagem (ou Nova Capitu Mineira)

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"... quando, emocionada, ela virá me abrir a porta como uma velha amante,
sem saber que é a minha mais nova namorada."
(O Haver – Vinícius de Morais)

A égua parou. Já nem sei se puxei as rédeas, mas diante de tal visão a égua parou. É que, tantos anos montando juntos, já nem precisávamos mais que as rédeas fizessem corpo entre nós. Assim, fico sem saber se parou pelo freio na boca ou por meu próprio estancamento ao cruzar com Martha a cavalo numa estrada pacata de Minas Gerais. Não que fosse uma grande surpresa, afinal, sabíamos desde os tempos de São Paulo que haveria um tal encontro. Entre tantos encontros que (fomos descobrindo) a vida já tinha armado para nós e que acabaram desencontrados, alguma vez mais haveríamos de nos cruzar. Mas isso já seria contar nossa história, e não é o motivo de escrever hoje.

Pode ser ainda que a égua tivesse parado por um terceiro motivo, que nem me passou pela cabeça (afinal, não teria nada que ver comigo): Trovão. Que outro nome poderia ter o garanhão preto que Martha montava? Bem, pode ser que fosse outro, mas o clichê lhes soa bem (ao cavalo e a Martha), então assim o chamarei. De fato, o garanhão parecia querer se aproximar da égua, chegou a agitar suas patas peludas, mas não se desviou um passo sequer da ordem silenciosa que o simples olhar de Martha emanava.

Ora, também eu conhecia aquele olhar, e sabia que pouco ou nada se podia fazer diferente do que demandasse, seja por vontade livre, seja por impulso anímico. Era como o canto de uma divindade das guerras ou tempestades. Dos tempos da Frei Caneca, conhecia bem estes ímpetos – os dela e os do cavalo. Que bela encarnação equina do passado! Ela, garanhão negro, mustangue livre e imprudente... não por isso menos mineira; eu, égua pacata de puro campo, inocente como seu nome – Bala de Goma, a Balinha. Ela dominando impassível a mais bruta montaria; eu alegremente no passo de uma égua querida. Ela fazendo reluzir o negro do cavalo em minhas retinas; eu incansavelmente esperando a estrada passar lenta sob as patas de Balinha.

Ela passando; eu ficando. Não que houvesse algum tipo de hierarquia ali. Era mais como uma dança improvisada que, por mais descompassada que se tornasse, continuava sendo uma dança a dois... ouso dizer que sem condução na maior parte das vezes. Confesso, sim, que a selvageria do garanhão chegou a ferir vez ou outra. Acontece que a dança não estava nisto, senão naquilo de que todo o seu galope era estranhamente tão mineiro quanto Balinha. Era uma espécie de cumplicidade: pela liberdade ou pela calmaria, nossos verdes se aliviavam mutuamente em meio à monocronia de São Paulo.

A paciência de um velho no alpendre esperando o movimento inexistente da rua – esta paciência tinha algo de complementar à passagem impaciente de um garanhão que ora está lá e logo já foi: o ir e vir que o velho tanto espera. Enfim, o livre e o pacato. Duas imagens do campo que curiosamente não se podem dissociar.

... Se bem que, de minha parte, tenho estado a sós com a segunda. Já Martha, desde os tempos da Frei Caneca (ou pelo menos assim era na época, não a via desde então), sempre manejou de alguma forma um jogo dos dois; às vezes esquisito, é fato, outras tantas mesmo revoltante. No mais das vezes, encantador.

Assim eram meus olhos naquela estrada de terra que, familiar, abrigava encontros: equinos e humanos. Como o velho do alpendre, ou pelo menos como seus olhos, vendo o ir e vir surpreendente e evidente. Ir e vir? Ou vinha para ficar? Retornava enfim às Minas Gerais, como sempre quisera? Ou como sempre dissera querer? Tínhamos de falar! Um encontro que certamente merecia mais tempo do que o por do sol teria a nos oferecer. Era preciso encostar os cavalos e esquecer da vida, até mesmo da vida em comum de São Paulo – era preciso viver a mais pura terra verde. Podia bem ser que estivesse de passagem. Martha era de passagem. Mas nada impedia que, de passagem em passagem, o tempo se alongasse.

E, finalmente – depois de tanto que já escrevi – passou! Os cavalos quase se encostaram, como costumam fazer, ignorando que nossas pernas descem mais para fora que seus lombos. Mas não chegaram a parar. Nos estendemos as mãos. Não como num aperto frio e formal, mas como num toque que materializa um abraço impedido de acontecer pela distância – e, quem sabe, pela velocidade. Posso dizer, não sem ironia, que nossas mãos passaram uma na outra. Olhos, boca, corpo e montaria disseram:

— A gente se vê!

— A gente se vê... — ecoei, um tanto passado.

E passou. Assim, sem mais nem menos. Assim como sempre foi Martha-de-passagem. Não sem uma promessa – um bocado ambígua, para não perder o costume (e a identidade, talvez): a gente se vê?

Contos de cantosWhere stories live. Discover now