Intermundana

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Era o mar. Era a beira do mar. Eram as ondas macias que, amansadas pelo tempo e pelo esforço, abraçavam meus pés... vez por outra. A maioria não ousava chegar - ou não suportava, talvez. Eram como meus pensamentos: nasciam de algum lugar de dentro, coração ou estômago, ainda sem forma, nos grandes jogos de idas e vindas do alto mar. Arrebentavam na garganta, ondas bravas, desesperadas, retas, mas tão irregulares. Daí em diante, só uns poucos davam-se a ver nos olhos da praia, onde pisavam meus pés. Só uns poucos, vez por outra. Esses que vinham, no entanto, abraçavam meus pés com suas águas geladas e nos tomavam completamente, nos faziam andar. O resto do tempo era areia seca. E se não tinha água, também não tinha sal.

O sal. Que falta fazia o sal! Ardia nos olhos, queimava na pele, arrepiava os cabelos e secava o corpo para uns dias, mas que falta fazia o sal! Irônico que era justo o mar que me secava, com tanto mais poder que a aridez quente da areia. Cada gota de sal chupava de mim mais água que poderia o sol, ao mesmo tempo em que acolhia em seu frio (adequado à quentura do dia) cada um de meus artelhos de unhas mal feitas.

Está bem, talvez eu esteja passando dos limites. Logo logo este conto será um amontoado de sal, de sol e suor, sem qualquer conteúdo além da metáfora. Ou melhor, será pura metáfora, sem saber de que se é metáfora. Explico-me (não a metáfora - ainda - mas me explico): acontece que minha escrita - talvez eu mesma o seja - é metáfora justamente deste não-sei-quê. Falava há pouco das ondas que me chegavam aos pés, dos pensamentos que me chegavam aos olhos. Poético. Mas não me interessa. Quero mesmo é saber do fundo do mar, do ponto mais embaixo, mais escuro. Quero saber é desse rebuliço de estômago e coração, que não pode ser nada para além de metáfora. Ou sensação. Mas sensação já é o que é, e não me vale escrever sobre. Estômago e coração.

Se a metáfora é demais, talvez me sirva então escrever sobre o corpo. O corpo no mar, mas o corpo. E já me defendo: não é metáfora. Se querem saber, estou realmente na beira da praia. Melhor dizendo, estou concretamente na beira da praia, porque a literatura também é real. Venho porque há sempre algo de impressionante neste encontro, como um encontro de dois mundos, ou de milhares de mundos, separados pela linha inexistente da superfície das águas. Tão separados, ainda assim dançam. E há a areia molhada, e há a espuma nas águas, e há a linha que vem e que vai com as ondas. Sobretudo há a sacralidade de saber que posso passar. Entrar e sair.

Não, nunca conheci o fundo do mar. Mas conheço o estômago e o coração. Sem metáfora, corpo. Estômago e coração, pés na areia molhados, sol na cabeça. Dou mais um passo ou outro para dentro do mar. Agora, minhas canelas e algo de minhas coxas. A espuma branca arrebenta ardida nessa pele já lisa de tanto erodir, para depois escorrer, como se os seios jorrassem leite e a pele largasse o sangue azul em meus pés. Não azul de nobreza, mas azul de saudade - da terra e de gente. Azul do mar que levou minha terra e minha gente. A cada gota de sal, posso ver da escotilha de um navio não tão grande em que embarquei... posso ver o grande azul engolindo minha terra e minha gente. Mas isso já faz tempo...

Mais um passo. O grande azul já me esconde os quadris. Estes, que sempre me criticaram não apreciar seus excessos - como se olhos fossem elogios. Dispo-me embaixo. O sal na intimidade me faz lembrar daquele homem a quem me entreguei no continente. Entreguei porque seus olhos azuis me faziam lembrar da moça que eu tanto buscava - não só em mim, mas sobretudo do outro lado do mar. Uma heresia interracial, talvez, mas era o azul que gritava pra mim - tanto nos olhos quanto no mar.

Estômago e coração. O útero já foi, e se um dia algo me gerou, já não há mais nada que possa oferecer na secura do sal que persiste no mar. Estômago e coração, a água já me cobre os peitos. Dispo-me embaixo e em cima. Leite e sal. A mesma brancura não esconde a secura do sal, mas me rouba quase tudo que há de água e de vida. Aqui, de peito coberto por água, o limite entre dois mundos. Ora o mergulho dos pés à coroa, ora a cabeça por sobre as marolas - porque já passei da arrebentação. Não, talvez não o limite, mas um limite. De repente, são vários: a linha hesitante da beira-mar, a vagina molhada, o útero infértil, a arrebentação (linha sutil que me avisa que retorne), o leite do peito branco como o sal seco... há, ainda assim, um limite final. A linha invisível da superfície. Mas é invisível.

Curiosamente, mesmo invisível, tem sobre mim mais poder que a arrebentação que me leva de volta à secura da areia. É que me restam os olhos. Ainda sobre a superfície, os olhos enxergam a água a perder de vista no horizonte. Não o fundo do mar, mas o anúncio de que há um fundo - e um fundo não deixa de ser um chão sob as águas. Enxergam também a secura da terra, o cinza da cidade. A essa altura, não é mais simples cidade. A esta altura, posso ver as formas da natureza por trás da cidade, posso ver que a terra por baixo do concreto ainda pertence à natureza - e pode emergir a qualquer momento! Não só, ainda mais: ela mesma sustenta o concreto. Não sei se por livre e espontânea vontade, mas sustenta. Discreta, até omissa, como o chão no fundo do mar. E ainda me restam os olhos...

O limite, um limite. Não há limite. A não ser pela superfície invisível, mas ela mesma oculta invisível que haja chão debaixo do mar e água debaixo da terra. Talvez haja para onde ir... ou não. Esse limite invisível, quase inexistente, assola meus olhos. Ainda me restam os olhos. Nunca os consegui abrir embaixo da água, especialmente com o sal do mar. Então, talvez, mesmo que mergulhe, nunca enxergue o fundo do mar. Por outro lado, talvez ele não seja para ser enxergado. Restam os olhos fora da água, mas há todo um corpo submerso, e talvez o fundo do mar seja para ser sentido, tocado, escutado, vivido. Estômago e coração, afinal.

Vou de cabeça. Talvez mesmo assim, por isso mesmo talvez, conserve os olhos para sempre fora da água. Olhos ou estômago e coração, talvez eu encontre um navio. Quem sabe até encontre minha terra e minha gente. Quem sabe eu encontre os olhos azuis. Quem sabe eu encontre a moça do além mar. Ou quem sabe eu encontre mesmo tão somente - e com toda sua grandiosidade - estômago e coração. O fundo do mar.

Contos de cantosWhere stories live. Discover now