Adentre o elevador

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Eram duas da manhã – a insônia me atormentava, como de costume. Eu estava sentado no chão, frente à porta de entrada, fumando o sexto cigarro e bebendo o quarto scotch da noite. Escutei a porta do elevador abrir no hall do nosso décimo primeiro andar. Era sexta-feira, lembrei-me. Ou melhor, madrugada de sábado... mas sexta-feira. Era o vizinho da frente que, como em toda sexta, se embriagara após o serviço e voltava seis ou sete horas mais tarde do que deveria, suplicando perdões. Como sempre, não escutei o barulho de chaves: a mulher esperava-o à porta toda semana, até que os gritos se espalhassem pelo prédio.

Parece que não dessa vez. Quinze minutos, vinte... Nada. Espiei pelo olho mágico – ele estava deitado, diante da porta fechada, usando sua pasta como travesseiro. Decerto era incapaz de entrar sem a mulher a queimá-lo com os olhos, talvez numa vã tentativa de evaporar aquele álcool. Voltei para o chão.

Minutos depois, ele batia na sua porta, quase melodicamente, feito um louco na solitária... A música tinha, de vez em quando, uma repicada, com a mão forçando a maçaneta. O gran finale veio como o eco do som do seu vômito sobre o capacho... O desgosto remexeu o scotch em meu estômago. A porta do vizinho abriu com um sonoro xingamento:

- Puta que pariu!

- Tu que me trancou pra fora. Culpa tua que não foi no banheiro.

Bastou para que a voz fosse aos berros:

-Ah! Culpa minha?! Culpa minha de casar com um bêbado maltrapilho que não consegue suportar a maldita vida sem atormentar os outros!

- Tu cala a boca, que ainda sou eu que boto comida no teu prato! O dinheiro é meu!

- É, talvez se não fosse, sobrasse pra pelo menos pagar o condomínio... Em vez de praticamente beber moeda com vodka!

Nessa hora a porta bateu. Ele a deve ter empurrado para entrar. Mas os berros ainda se ouviam:

- Dormir o cacete! Essa porra dessa carta chegou hoje. Se a gente não quitar o condomínio em dois meses, a gente tá na rua!

- Melhor assim! Pelo menos não vai ter porta pra vadia ficar me esperando. Não tem coisa melhor pra fazer não?!

- Vai se... - aqui, a mulher teve um tom mais indignado que revoltado na voz. E uma porta lá dentro bateu. Decerto a do quarto. Depois a casa aquietou-se.

Aquela semana tinha sido diferente. Não era uma briga como as outras... Parecia mais sincera, mais saturada ao mesmo tempo. Talvez (tomara) fosse a última, a gota d'água. Quem sabe assim, aquilo tudo deixasse de atormentar a insônia do prédio semana após semana.

Apaguei o último cigarro do maço. Ainda eram umas vinte para as três. Com base nas outras noites, ainda tinha mais ou menos uma hora e meia antes de apagar no sofá. Peguei dez reais e saí para comprar mais. O elevador vinha do subsolo; quando passava pelo três, a porta do casal abriu forte, e veio o "bêbado maltrapilho" com uma garrafa Pitú na mão, dizendo pra mim:

- Isso é um adeus, Márcio. Eu posso ir morar debaixo da ponte, mas não olho mais na cara dessa vadia. - falou tão rápido que não deve ter dado dois segundos. Limitei-me a levantar as sobrancelhas. O elevador parou no sexto; ele começou a puxar a porta.

- Seu Chico! - tentei pará-lo, o que só fez forçar mais. Até que a porta arrebentou escancarada. Como se nada fosse, ele resmungou mais uma vez:

- Acha que pode mandar em mim...

Entrou no elevador ausente, dando um gole na Pitú. Nem sequer gritou. Desceu. Só desceu. Creio que seu encontro com o dito cujo deu-se entre o sexto e o sétimo andar. Ecoou no tubo. Nada fui capaz de dizer. Nenhum membro fui capaz de mover. Tornei o rosto, lá estavam os olhos entorpecidos da mulher... de mulher entorpecida – aquela que se tornaria, desde então, bêbada e maltrapilha.

Contos de cantosWhere stories live. Discover now