Silêncio

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Um pouco estabanado por efeito da ansiedade, entrou no carro, trancou as portas e esperou. O silêncio. O silêncio aterrador do carro fechado na garagem era o que esperava. Não exatamente o silêncio, mas seu efeito, como um ansiolítico injetado diretamente pelos ouvidos. Os ouvidos do rapaz eram extremamente sensíveis, diga-se de passagem: as obras da cidade o faziam tremer feito uma britadeira, o som do café pingando do coador o fazia sentar-se à varanda da casa de sua avó, e a voz dela o fazia estremecer dum não-sei-quê. Dum tudo-junto-ao-mesmo-tempo, talvez.

E o silêncio do carro. De nada importava que fosse o carro; onde quer que fosse, interessava que era o silêncio mais pungente que já escutara. Sentar ali, motor desligado, vidros fechados. Aquilo trazia de volta o dia em que descobriu o silêncio. Tirou as chaves e, antes de abrir a porta, notou: todo som desaparecera, e com ele toda a alma. E curiosamente, o desaparecimento da alma não lhe roubava a vida, mas de alguma maneira alargava o próprio espaço de ser: alma. Desde então, conhecendo os ouvidos que tinha, o terror daquele silêncio se tornara sua medicina: por profilaxia, dois minutos de manhã, ao sair de casa, e mais dois quando chegava à tarde. Nas crises agudas, dez, quinze ou vinte minutos, a serem avaliados de acordo com o grau de intensidade da crise.

Desta vez, porém, de alguma maneira, o silêncio não suportou o seu vazio. Aquele zumbido que se ouve quando cessam os barulhos, aquele zumbido, como nunca lhe ocorrera, parecia ferver algo do fundo de seu ventre. Como algo que se gerava em um corpo de homem, e o fazia em pedaços pelo simples ato de gerar. Era um grito.

Mas não gritou. Em vez disso, pôs a chave no contato e escutou o som da gasolina sendo injetada – injetada como o remédio que não lhe servira desta vez – um barulho para somar ao zumbido inútil. Quando tinham se unido, injeção e zumbido, virou a chave, e o giro do motor era seu grito. Acelerou para gritar mais alto, mas não gostou da mistura de sons, então soltou os freios e foi: subiu a rampa da garagem, saiu para a direita, direita de novo, reto até o farol, esquerda no farol, direita na avenida. Ah, a avenida! Correu no asfalto recentemente aplainado da avenida. Pensou que devia fazer isso mais vezes. Não a velocidade perigosa a que chegava, mas dirigir a esmo. Gostava de dirigir... podia ser que fosse um remédio melhor que o silêncio?

Vendo o sinal fechado adiante, desengatou, e deixou o carro deslizar, desandando pouco a pouco. Tão certeiro fora neste gesto, que sequer precisou do freio. E o sinal fechado. Olá, como vai? Eu vou indo, e você, tudo bem? Seria um encontro vil, mas preciso. Olhou para os carros ao lado, em busca dos cabelos mais pretos que o asfalto novo. Não eram bem os cabelos que queria, mas eles seriam o signo para encontrar os olhos amendoados, mestiços, da moça. Não encontrou, e não encontrar não o afetou.

Sinal aberto. Cruzou a outra avenida, retorno adiante, para pegar à direita a avenida cruzada. Mal enxergava o caminho, pois enquanto procurava no farol, anoitecia sem que visse. A noite e a água dos olhos desafetados formavam uma péssima combinação. Enfim a direita, rua pequena, esquerda, esquerda, farol atravessando a avenida, cruza a primeira, cruza a segunda, direita na terceira.

Fora certeiro, mas brecou gravemente quando se deu conta disso. Impensadamente, como já tinha sido o próprio girar da chave no contato, guiou para a rua dela. Alguém atrás tocava a buzina, então encostou. Não sabia o que fazia ali, mas o silêncio parecia agora ter efeito. Não que a rua não tivesse movimento, muito pelo contrário. Mas se viu, ele mesmo em silêncio. Não sabia o que fazia ali, mas a serenidade de estar na rua dela era prodigiosa. Sendo assim, aproveitou o passeio e desceu do carro. Dirigira a esmo, agora caminhava a esmo, por mais que soubesse precisamente aonde ia.

Já havia três semanas desde a última vez em que estivera lá. Três semanas desde a última vez em que se viram – e que se falaram, portanto. Praticamente só se falavam quando se viam. E nos últimos meses, de quando em quando, ele estava naquela rua. E costumava encontrar o silêncio ali, apesar do movimento que já conhecia. Aliás, algo do silêncio germinara pela primeira vez ali, do outro lado da rua: o cinema. Tinha sido a primeira vez que saíra com ela, e foram comer na lanchonete ao lado depois do filme. Algo foi dito; e respondido com o silêncio. E o silêncio respondeu o primeiro silêncio, e mais um silêncio respondeu o outro. Parecia um desafio: manter-se em silêncio. E sem desviar o olhar! Olhos nos olhos, ele perdeu o desafio:

Contos de cantosWhere stories live. Discover now