Dança estrangeira

3 0 0
                                    

As gotas de chuva castigam as mãos de Benício. É fim de tarde, mas não se vê o por de sol exuberante de sua cidadezinha, abandonada pelos homens, mas jamais esquecida por Deus. Não, Ele jamais esqueceria a cidade em que se ergueu a mais bela igreja da região. Também Benício não esqueceria a praça em que aprendeu a beleza e a tristeza do amor. Esta praça em que agora circula saudoso, feito carrossel, dando voltas no coreto e na memória... esta praça foi o centro não só da cidade, mas de um amor esquecido, este sim esquecido por Deus. Roda, rodopia, gira o mundo, envolta do coreto, onde canta a Espanha em sua memória.

Brasileiro que era, com sua pele tingida pelo sol e seus pés tangidos pelo samba, perdeu a noção, perdeu a nação. Em sua memória, rodou no flamenco dos estrangeiros que estavam ali de passagem. Nada mais certo para um amor tão cigano, que estava ali de passagem. Um olhar escuro, escurecido pelo fogo tremendo, e tremendo em labaredas mais que ameaçadoras. As suas águas serenas, tão estáveis que eram, então borbulhavam ferventes, dançando com a chama dos olhos ardentes. Reconozco que me enloquecen tus carnes, reconoces que te enamoran las mías...

Um sorriso, um aceno dançante, as palmas espanholas batendo junto do coração. Os passos de dança, os passos andantes, pés caminhavam, se aproximavam, a noite caía e o fogo queimava. Os pés caminhavam sutis, um a um, pra junto de um outro. Brasileiro que era, perdeu a noção, perdeu a nação. Cigano, agora já era. Palmas e cantes e bailes e passos. Mãos se tocavam. As gotas da chuva agora molham, feito sua memória do toque das mãos, suadas pela ansiedade e pelo desconhecido. O toque da carne cigana e ardente, os olhos escuros velando a visão, os pés entre os pés dançando enlaçados. E o medo, a fúria, o terror de saber de um amor cigano, que passa estrangeiro e segue seu baile. ¡Así es que, si me mientes casi dentro de mi boca, te regalo el resto de mis días!

O vermelho do fogo na boca não mais brasileira já ardia nos beijos flamencos do estrangeiro. Y es que hay mentiras que sientan tan bien que parecen verdades ocultas. Já não se pode olvidar, mas já não se pode lembrar. Ai, mas como há de olvidar! Há de olvidar este amor esquecido por Deus! A dor de saber que o olvido e o ouvido, então invadidos pela carne da língua, em breve estariam a sós, pois que cigano não há, se não de passagem. O primeiro beijo de um homem, que trazia a Espanha no baile e no sangue para invadir a cidade, não podia ser senão um beijo cigano, não podia ser senão de passagem. Mas de nada vale pensar, quando o corpo manda calar para as águas e as chamas dançarem na praça. ¡Así que, si mientes, miénteme bien, porque hoy quiero engañarme de nuevo!

Tudo que resta do cante, tudo que resta do baile, tudo que resta das palmas, tudo que resta dos passos, tudo que resta são gotas de chuva, alvoroçando uma saudade, um segredo. Rodopios na praça que evanesce na chuva já não ardem mais, já não cantam mais. Não na alegria dançante, não na tristeza nostálgica. Mas resta. Resta a memória que vem atenuar um fim de tarde tão morno, con segretos que endulzan la hiel de las noches más tremendas y más oscuras. E se foi o flamenco, se foram as palmas, o cante, o baile, se foram as carnes. Se foram, ciganas que são, de passagem, sempre estrangeiras e sempre tão elas mesmas. Ya no reino en estas noches orgullosas en las que acabo amaneciendo triste y sola. O que resta ali é a igreja que lembra de Deus e um coreto que esquece o amor. 

Contos de cantosWhere stories live. Discover now